segunda-feira, março 29, 2004

“Faz o que o teu coração te mandar”

Há pessoas que acham que só vale a pena falar do que corre bem (deve ser por isso que não se fala do design gráfico em Portugal). Dois anos atrás participei numa conferência sobre Design e Ética que, de acordo com a anterior afirmação, não valia a pena falar de todo.

No começo da conferência, alguém perguntou se estávamos a falar de ética-tipo-vegetariano ou ética-tipo-deontologia. Um dos professores universitários que serviam de moderadores disse (e passo a citar) “que isso era discutir o sexo dos anjos” e que “o pediatra lhe tinha dado um conselho valioso: ‘você pensa que é inexperiente, mas siga o que o seu coração lhe mandar e vai correr tudo bem’”. Logo a seguir, disse que não valia a pena discutir a ética de forma geral, porque cada caso é um caso.

Pouco depois, outro professor (dono de um atelier de design) disse que na questão da ética as coisas eram muito simples: ele punha um papelito em cima da mesa com as regras e o cliente assinava ou não. A plateia aprovou com acenos de cabeça e murmúrios de “é claro que sim”. O caldo só entornou quando alguém se lembrou de perguntar o que estava escrito no papelito. “Ah…Hu…Cada caso é um caso…Depende…” Resumindo: noves-fora-nada.

Mais uma vez um debate potencialmente interessante sobre um dos temas quentes da cultura actual terminou numa manifestação pública de ignorância orgulhosa e porreirismo ideológico.

Pai, eu sou…um designer grafico

Estava sentado em casa dos meus pais a ver na televisão um programa sobre a Experimenta Design 2001. O meu pai entrou na sala. Eu já estava cansado de tanta intensidade e cosmopolitismo e perguntei-lhe se queria mudar de canal. Ele disse que não. Assim, continuei a ver a sucessão deliberadamente desconexa de imagens, sons e letras, cada vez mais consciente de como o design gráfico devia parecer frívolo a um ecologista profissional como o meu pai. A certa altura ele diz ‘Vi outro dia no Telejornal um fulano que fazia letras. Deve ser difícil.’ Respondi que não era assim tão difícil. Mais tarde, apercebi-me de que não devia ter dito nada. Tinha passado por um momento raro: o meu pai achava difícil o que eu fazia! Ele sabia o que eu fazia! Alguém sabia!

É preciso aqui um momento de esclarecimento aos não-designers que estiverem a ler este texto: A vida de um designer é uma via dolorosa de mal-entendidos humilhantes relativos à profissão que exercem. Um exemplo entre muitos: na minha inspecção militar, o sargento desejou-me boa sorte para as ‘passagens’, depois de eu ter tentado explicar-lhe o que fazia. Demorei uns dias a perceber. Chega a ser uma anedota privada que só os designers gráficos portugueses entendem: os nossos pais pensam que somos arquitectos, a maioria das pessoas pensa que fazemos roupa e os outros profissionais liberais pensam que fazemos cadeiras. E quando tentamos corrigir, toda a gente começa a vidrar os olhos.

Numa actividade que se dedica à comunicação esta situação pode ser muito frustrante. A maioria dos profissionais da área não tem tempo ou vontade para filosofias. Confiam que o contacto prolongado do público com os produtos e actividade do designer gráfico pode, por si só, eliminar o problema. Cliente a cliente, cartaz a cartaz, revista a revista — cada caso é um caso — a luta prossegue e ao fundo do túnel, está o reconhecimento público. Parece razoável, mas este ponto de vista é excessivamente passivo e optimista, como vamos demonstrar.

A falta de consciência do público faz com que se veja o design como um mero invólucro isolável do verdadeiro produto. Para uma pessoa não informada é um pouco escandaloso que a forma das letras obedeça a outras regras que não as do bom português, mesmo quando não as contradiz. Não é uma novidade que na sociedade de consumo os objectos são como uma linguagem. Não se limitam a ser apenas utilitários, mas também querem dizer qualquer coisa. Isto não é apenas um ganho colateral, mas a parte crucial da questão. Numa sociedade de consumo, os objectos são úteis sobretudo porque significam. Podemos argumentar quanto à moralidade do seu significado, mas mesmo isto são também significados que atribuímos. Imaginar uma sociedade sem signos, é equivalente a imaginar uma sociedade sem sociedade.



P.s. - Há cerca de um ano, um amigo arquitecto pediu-me para assinar um abaixo-assinado pelo ‘Direito à Arquitectura’. Eu perguntei-lhe o que era isso. Ele disse que era para que só pessoas com formação em arquitectura pudessem assinar projectos. Naturalmente, assinei, mas perguntei-lhe se a partir de agora iam deixar de me chamar arquitecto.

Mitologia do Design Gráfico: O Cliente

E quando o designer produz uma coisa que sabe ser feia de morrer e completamente ignóbil, cheia de cores, drop-shadows e afins? Geralmente, atribui este tipo de deslizes ao cliente, personagem um bocado típica e obtusamente pragmática, perita numa nova modalidade de sabedoria popular a que se chama marketing, segundo a qual a sua revista tem que parecer informada, em cima do assunto, pertinente; por todas estas razões é conveniente que pareça que foi concebida em três minutos, por um aluno do nono ano com excesso de açúcar no sangue. Segundo estudos científicos, só os jovens e os reformados têm tempo para ler e ver televisão — as pessoas sérias não se deixam ludibriar pela impressa e comunicação social. Isto só deixa os jovens, porque os reformados são obrigados a gastar tudo o que têm em medicamentos e comida. Infelizmente (segundo o cliente), se um jovem não tem sempre no seu campo de visão pelo menos três milhões de cores e quinze tipos de letras diferentes vai logo a correr drogar-se, ter uma infância difícil, ou seja lá o que essas criaturas fazem quando não lêem— parece que os jovens reagem melhor à má tipografia e ao excesso de degradé.

Incompreensão

Sempre que vejo a palavra Design escrita na capa de um livro que não conheço, abro-o, folheio-o; se lá dentro só encontrar cadeiras, volto a pô-lo na estante. A maioria dos livros portugueses de design sofrem do mesmo mal que alguns cinemas: excesso de cadeiras.

Quando se fala de design em Portugal, quer-se dizer mobiliário ou imobiliário, mas raramente algo tão intelectual como uma publicação. Se calhar tem a ver com a nossa mentalidade terra-a-terra, de alfabetização recente, capaz de apreciar o bom desenho de uma casa, carro ou mesmo peça de roupa mas não consegue estender essa consideração a objectos menos utilitários e duradouros como revistas ou livros.

O Equipamento, a Moda e a Arquitectura são as modalidades que o português mais associa à palavra ‘design’; no caso de letras impressas ou online, ele é materialista: o termo ‘design’, em relação a um livro ou revista, descreve quase sempre um objecto com aparência manifestamente luxuosa (entenda-se impressões a seis cores, vários papéis, cortantes, etc). Isto ficou bem demonstrado quando o Professor Marcelo Rebelo de Sousa recomendou, numa das suas montras de livros, a revista Egoísta como tendo um ‘Design cuidado’. A Egoísta tem realmente um aspecto de que se gastou dinheiro a fazê-la, no entanto as suas opções tipográficas são duvidosas: é usada uma fonte monoespaçada, onde cada caracter, tal como numa máquina de escrever, tem a mesma largura, seja ele um I ou um M. Isto só por si não é mau, mas quando se justifica o texto em bloco, provoca-se um espacejamento desigual entre palavras, esburacando o texto e contrariando a regularidade própria de uma fonte mono espaçada.

Com tudo isto não quero dizer que o design editorial é mais incompreendido que o Design de interiores, de moda ou de equipamento — afinal, a inocência do público português estende-se a todas as áreas do Design. Damos mais atenção às cadeiras e aos carros, aos vestidos e às casas por causa de um mal-entendido: estes são vistos como objectos materiais, investimentos, propriedades; os livros e as revistas são objectos espirituais. É feio julgar um livro pela capa e, naturalmente, interessa-nos mais o que está escrito do que o aspecto do que está escrito.

Desta maneira, para os mais pragmáticos, a tarefa do designer gráfico parece irrelevante porque se limita ao mero arranjo de artefactos produzidos por terceiros. Ele coloca textos de um escritor ao lado das imagens de um fotógrafo e dos desenhos de um ilustrador e mesmo as letras que ele usa foram inventadas por outros. Qual é a utilidade disto tudo? É preciso andar na escola para saber fazer isto?

A justificação clássica é funcional: o designer adequa uma publicação a quem a lê e a quem a produz. O formato e paginação devem reflectir as necessidades físicas do leitor— a sua acuidade visual, a sua velocidade de leitura e a posição em que o lê; também deve facilitar o fabrico dos objectos, tomando em conta os materiais de que é feito e as máquinas onde é produzido. Esta é uma tarefa perfeitamente respeitável, que mesmo os mais cépticos são obrigados a pelo menos ter em conta.

No entanto, um designer não se limita à optimização produtiva e ergonómica de objectos, as suas funções prolongam-se ao significado das formas que produz e reconfigura. O valor de um objecto não reside apenas na sua utilidade, mas na maneira como ganha significado em relação a outros objectos. O designer, seja ele de equipamento, gráfico ou de interiores, cria e gere a mais-valia semiótica dos objectos e ocupa-se dos significados produzidos pelas suas diferentes configurações. Poder-se-ia dizer que organiza todo o tipo de coisas como se fossem palavras numa frase. Os críticos dirão que nada de novo é criado. Num episódio do Terceiro Calhau a Contar do Sol, John Lithgow acusa um escritor de plágio; todas as palavras do seu livro já tinham sido usadas num dicionário de inglês.

Os nossos melhores clientes são designers

Nenhum dos pequenos actos de traição praticados no nosso dia-a-dia é feito com intenções assumidamente más. O designer como charlatão; o designer como crítico social; são tudo formas aceites e antigas do design se relacionar com o seu exterior. Mas o design relaciona-se mal com o seu interior. A ideia do designer como intermediário e comunicador vai perdendo sinceridade num mercado onde os principais empregadores são também designers.

Criticar

Em Portugal, a ausência de uma crítica especializada distingue o design gráfico da maioria dos outros designs (moda, equipamento, etc). O grande público ignora o design gráfico quase totalmente, confundindo-o com marketing ou publicidade. Quando confrontados com esta situação, muitos designers já estabelecidos declaram não se interessar por uma divulgação da profissão - basta fazer o trabalho bem feito e com amor, etc. No entanto, quando as coisas dão para o torto é frequente ouvir tiradas como “o designer deve educar o cliente”.

Neste momento, estão em marcha autênticos cursos de formação de clientes (verídico!!!). Uma solução muito mais óbvia seria a crítica na imprensa geral. No entanto, a existência de uma verdadeira recensão da actividade gráfica nacional provocaria alguma má disposição, comparada com a sua não existência. Embora a crítica de café seja bastante dura, é muito raro um designer ser confrontado com uma recensão do seu trabalho. A pouca imprensa especializada — e não só — tem os seus canhões convenientemente apontados além-fronteiras.

O público interessa-se sobre o que lhe é pertinente, sobre aquilo que o afecta e emociona, aquilo que lhe está próximo. Na televisão e imprensa actuais, a ênfase é local. Notícias de bairro, pequenos acontecimentos elevados a escândalo. Para o melhor ou para o pior o público habituou-se a ser alvo de notícias. Enquanto o design gráfico internacional tenta alcançar uma voz mais activa dentro da sociedade, o design gráfico nacional parece satisfeito de simplesmente assistir descansadamente ao que se passa lá fora. Não se trata de protagonismo, mas simplesmente de estar presente.

sexta-feira, março 26, 2004

Prólogo

Começar a escrever sobre design gráfico é difícil. Embora um designer trabalhe com letras, não é encorajado a pensar demasiado sobre (e com) elas.