quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Culto Cargo


A maioria dos Cultos Cargo apareceu pouco depois da Segunda Guerra Mundial, quando a marinha americana começou a desmantelar as suas bases aeronavais no Pacífico Sul e o fluxo de mercadorias usado para manter os nativos satisfeitos foi cortado. Algumas tribos, descontentes com a gestão americana, resolveram tomar o assunto em mãos, e começaram a construir pistas de aviação em terra batida, com aviões falsos de bambu e torres de controle de madeira, onde sacerdotes, equipados com auscultadores de madeira, tentavam chamar os aviões dos deuses e a sua mercadoria sagrada.

À primeira vista, o Culto Cargo é um mal-entendido que os designers compreenderão talvez demasiado bem: uma fé desproporcionada na possibilidade de uma forma e de um conteúdo dependerem completamente um do outro, sem confusões, sem ambiguidades (para o designer, como para o sacerdote do Culto Cargo, a forma de um avião é tão importante para o seu funcionamento como o seu motor). Por outro lado, o Culto Cargo é também uma convicção, muito semelhante à dos designers, na capacidade de uma forma poder efectivamente convocar um “futuro” ou um “lá fora”.

Contudo, um Culto Cargo envolve também uma grande quantidade de trabalho para assimilar uma realidade estranha e os resultados podem ser interessantes e produtivos mesmo que não sejam – nem pretendam ser – autênticos. Por exemplo, o primitivismo na arte do começo do século XX foi uma espécie de Culto Cargo invertido: máscaras africanas reproduzidas na Europa como objectos de arte, isoladas do seu contexto religioso original.

Mais frequentemente, Culto Cargo é uma designação genérica e negativa para uma confiança excessiva em formalidades à custa de substância. Richard Feynman, por exemplo, chamava Ciência Culto Cargo a qualquer coisa que se assume como científica simplesmente porque segue superficialmente as formalidades da ciência. Nesse aspecto, o design não só é um grande consumidor como um grande produtor de Ciência Culto Cargo, apropriando-se de diagramas científicos, de mapas, e mesmo de jargão mais ou menos científico, como demonstra o mapa do Metro de Londres, inspirado num circuito eléctrico, e adaptado a todo o género de usos, mesmo que irónicos (o trabalho de Martí Guixé que ilustra este post) ou desadequados (o mapa falhado para o Metro de Nova Iorque de Massimo Vignelli ).

Evidentemente, a Ciência Culto Cargo não anda muito longe da boa e velha Burocracia que muitas vezes prefere ter um certificado a dizer que uma coisa funciona do que ter essa coisa a funcionar. Um bom exemplo disso é a crença dos designers portugueses de que escrever “designer” nos recibos verdes é o primeiro passo para o reconhecimento mais alargado na sociedade portuguesa. Na verdade, só demonstra que o design pode apregoar inovação e desenvolvimento à vontade, mas também ambiciona o seu lugarzinho no status quo, estando bastante disponível para produzir uma versão 2.0 da Burocracia, mais sexy, mais cool, mais adaptada ao século XXI. (Desde há algum tempo que se tenta chamar o grande Deus do Progresso e da Modernidade amontoando ortogonalmente pequenas porções de texto não-serifado, alinhado à esquerda.)

3 Comments:

Blogger anauel said...

Estava difícil o regresso! Já não podia mais com a capa dos New Order sempre a encabeçar o Ressabiator...
Como sempre, em cima do assunto e perspicaz. Acima de tudo, puxando motivos e inspiração em campos alheios à disciplina (fantástica a história dos culto cargo), o que é sempre um ganho.
Sou um dos que escreve nos recibos verdes "outros artistas plásticos" (tema já abordado aqui em post anterior) mas, ao contrário da maioria, não tenho problema algum com isso. Felizmente, já aprendi que não é o termo empregue no recibo verde que me ensina seja o que for, que me nutre, mas sim o trabalho e interaccções realizados anteriormente, junto da entidade para quem passo o recibo. Quem lê o recibo, na verdade? Um qualquer técnico oficial de contas (sem prejuízo de valores, atenção)!

PS - Para quando um texto sobre a remodelação gráfica do Público? E há pensamentos e apontamentos sobre a contratação de Sagmeister (esse Kolhaas do design gráfico, nas palavras de Guta Moura Guedes) para a criação da imagem da Casa da Música?

2:00 da tarde  
Blogger Ressabiator said...

Não fazia ideia quando escrevi o post, mas hoje é o 50º aniversário do Jon Frum Cargo Cult.

PS - Tenho estado a escrever um texto que comenta a contratação de Sagmeister para Casa da Música.

11:50 da tarde  
Blogger joao said...

Mui-to-bom-!-
Mui-to-bom-!-
Mui-to-bom-!-
Mui-to-bom-!-...

6:33 da tarde  

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