terça-feira, abril 26, 2005

As Fontes têm Memória?



Foi há uns meses que reparei no fenómeno. Tinha acabado de comprar um livro chamado Metro Letters – A Typeface for the Twin Cities, editado por Deborah Littlejohn em 2003, sobre o projecto de criação de uma fonte para as cidades de Minneapolis e St. Paul. Seis designers foram convidados, entre os quais Peter Bil’ak, Just von Rossum e Erik Blokland, e o resultado foi a família Twin, constituída por fontes de espessura uniforme, sem serifas, de desenho geométrico, embora com detalhes rebuscados e curvas exóticas. Na página 23 aparecia uma aplicação de uma das fontes, a Twin BitRound, ao título do jornal The Minnesota Daily que me fez lembrar bastante o jornal Futurismo de 1933, uma publicação claramente fascista com design de Enrico Prampolini.

Uma série de coisas que me incomodavam há algum tempo começaram a fazer mais sentido. Há cerca de um ano, a grande fonte institucional da moda em Portugal era a Din, usada e abusada para todo o tipo de serviço – o mais caricato talvez tenha sido a edição nacional do Guiness Book de 2004. Como alternativa, quando era preciso mais personalidade, apareciam diversas Clarendons, como no suplemento Y do Público ou na antiga imagem da Culturgest. Estas soluções foram usadas até à exaustão, até parecerem inevitáveis, até – finalmente – enjoarem.

Naturalmente, havia expectativas quanto à sucessão e uma corrente ganhava particular força: um grafismo neo-iluminista de paginação centrada usando fontes como a Garamond, a Mrs. Eaves e a Filosofia, aparecia em publicações influentes como a McSweeney’s ou a Emigre. Depois de décadas de texto assimétrico, justificado á esquerda, de inspiração mais ou menos suíça, a recuperação do eixo central não é surpreendente. Também não espanta o regresso ao passado depois de uma década de novas tecnologias, gráficos em pseudo-bitmap, anime ou 3D.

Por outro lado, fontes como a Twin, ou a Lux Sans, – usada pelos Gráficos do Futuro no design actual da Culturgest – anunciavam um revivalismo diferente: um regresso às fontes dos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. A editora inglesa Penguin, por exemplo, também recuperou recentemente o seu grafismo típico dos anos trinta no novo design da colecção Reference Library (embora substituindo a Gill pela Futura). Mas, se em Inglaterra este design talvez lembre uma época particularmente feliz – os últimos anos como super-potência, coração do império, etc. – , aqui em Portugal ele traz à memória outros impérios e outros tipos de modernidade, mais embaraçosos e talvez até mais perigosos.

O design da nova revista Atlântico demonstra bem este novo estilo – e aquilo que ele evoca: o título aparece numa fonte não-serifada, de espessura uniforme e recorte decorativo; a paginação é centrada, recorrendo por vezes a caixilhos simples e filetes; os artigos são acompanhados exclusivamente por ilustrações de estilos variados. A Atlântico, faz lembrar certas revistas literárias portuguesas dos anos vinte e trinta, bem como as publicações fascistas italianas de que falámos mais atrás. É bastante provável que esta semelhança seja uma opção consciente – a Atlântico assume-se claramente como uma revista de direita.

Mas será que as fontes têm memória e o design gráfico está a recuperar inconscientemente estas soluções para representar a época em que vivemos? É uma pergunta inquietante, mas calculo que a resposta da maioria dos designers seja negativa. Para eles, o passado é apenas um catálogo de estilos “reutilizáveis” arbitrariamente – as fontes e os estilos não têm cor politica, são neutros, tal como os próprios designers.

De qualquer maneira, o design português actual está mal equipado para responder a este tipo de questão. Tendo aparecido pouco depois do 25 de Abril, com a criação dos cursos de design nas Belas Artes de Lisboa e Porto, nunca teve muita vontade de olhar criticamente para o passado. Limitou-se à gestão de uma modernidade importada do exterior, num esforço constante e frustrado de educar o país – ou pelo menos o cliente. Sempre procurou as suas soluções lá fora e, naturalmente, nunca imaginou que isso o trouxesse a lugares familiares, mas embaraçosos. Será que é mesmo possível regressar a estas fontes ignorando as associações históricas que trazem?