sexta-feira, dezembro 01, 2006

Autoria, Roubo, Apropriação & Consumo


Há uns tempos, ao passar por uma sala de aula do primeiro ano de design, ouvi uma rapariga sussurrar a outra qualquer coisa do género: “Não acredito! Aquela vaca também usou um quadrado!” A acusação era sentida e ilustrava bem as estranhas expectativas que muitos designers têm em relação à originalidade. Geralmente, os mesmos que negam o “designer como autor”, que acham que ser chamado “artista” é o pior dos insultos, também acreditam – sem muita coerência – que a falta de originalidade é um problema.

Contudo, a originalidade depende do contexto e existem ocasiões em que compensa não ser original. Por exemplo, em 1978, o jovem Peter Saville, menos ingénuo que a nossa aluna de design, foi pedir emprego a Tony Wilson, fundador da Factory Records. Segundo se diz, em vez do portfolio levou o livro Pioneers of Modern Typography, de Herbert Spencer, roubado na biblioteca da escola. “Eu quero fazer coisas deste género”, disse, apontando para as reproduções dos trabalhos de Jan Tschichold. (Também apreciava Herbert Bayer, mas o colega Malcolm Garrett já o “usava” nas capas dos Buzzcocks, e havia, apesar de tudo, honra – ou pelo menos originalidade – entre ladrões.)

Actualmente, a palavra para descrever a situação seria apropriação, um termo mais elegante do que roubo, e menos obviamente irónico do que homenagem, mas o pormenor do livro ser mesmo roubado desintelectualizava a coisa, emprestando-lhe um restinho de agressividade e de transgressão juvenil, lembrando que até as apropriações são roubos e que todos os roubos envolvem violência. (Quando perguntaram a Saul Bass se achava que o logótipo do filme de Spike Lee Clockers era uma homenagem ao logótipo de Anatomy of a Murder, ele respondeu que “Homenagem é uma forma educada de roubar os mortos. Pois bem, eu não estou morto, e isto é plágio.”)

Numa apropriação, a autoria de um objecto é disputada entre dois ou mais agentes. Em alguns casos, o objecto pode ganhar um novo autor, que se junta ao anterior ou o substitui totalmente. Um bom exemplo é a capa de Peter Saville para o álbum Movement, dos New Order, baseada num cartaz de Fortunato Depero: é difícil não associar o original de Depero à cópia de Saville, indicando que uma apropriação pode alterar retroactivamente a experiência de um objecto.

Assim, a autoria não é necessariamente um acto de originalidade, mas um movimento de circulação dos objectos – de público a privado ou de uma posse para outra –, não interessando verdadeiramente onde este movimento começou – a sua origem –, ou onde irá acabar – a sua finalidade –, mas, como sugeriu Gilles Deleuze, o seu movimento. A qualidade de uma apropriação reside precisamente nas mudanças que ocorrem enquanto um objecto se move: em alguns casos esse movimento é produtivo, noutros não há verdadeiramente apropriação, mas apenas falta de imaginação. Neste caso, estamos a falar de consumo.

Um bom exemplo de design feito para ser consumido são os anuários da Graphis. Criados em 1952 pelo suíço Walter Herdeg, são antologias de trabalhos de todo o mundo, divididos por secções de acordo com o formato (poster, brochura, livro, identidade corporativa, etc.). A intenção da recolha não é histórica, critica ou teórica, mas pragmática, como o próprio Herdeg explica na badana da edição de 67/68:

um potencial enorme reside numa ideia luminosa. Uma centelha de génio gráfico, aplicada no sítio certo, pode transformar os gráficos de vendas em fogo-de-artifício e chamar a atenção de nações inteiras. Mas como pode um designer gráfico capturar esta centelha? Não há receita. A coisa mais parecida com uma receita é apresentada nas páginas deste livro – uma antologia de centelhas gráficas recolhidas dos mais talentosos incendiários gráficos de todo o mundo, e portanto, de certa maneira, um pequeno espectáculo de fogo-de-artifício.

A única receita – entenda-se “teoria” – para o design seria portanto a apresentação de exemplos fora do seu contexto, uma tarefa para a qual a Graphis Annual se adequava particularmente bem. Ao classificar os trabalhos por formato, secundarizava a sua autoria e a situação em que tinham sido concebidos, remetendo essa informação para dois grupos distintos de legendas. Para encontrar o autor e o cliente de um poster, por exemplo, era preciso ver primeiro qual era o número desse poster, procurar o número correspondente no grupo de legendas que indicavam o autor, para, de seguida, repetir o processo num segundo grupo de legendas para descobrir o cliente. Esta estrutura favorecia mais uma consulta superficial do que uma análise profunda, acabando por criar a mesma sensação de abundância excessiva e inconsequente que se tem em alguns centros comerciais: passeava-se distraidamente, parando aqui e ali – se estávamos à procura de uma ideia para um cartaz íamos à secção de cartazes, se queríamos um livro íamos à secção de livros. Curiosamente, os textos de introdução criticavam explícita ou implicitamente este esquema, queixando-se do excesso de imagens e de estímulos e apelando ao critério crítico das gerações futuras (são bons exemplos desta tendência os textos de Jerome Snyder na edição de 67/68 e de Massimo Vignelli na de 83/84).

Não sei quanto custava o livro que Saville roubou em 1978, mas a Graphis Annual de 1992 custava na altura quinze contos (hoje seriam cerca de quarenta contos). Estava fora do alcance do estudante comum, e acabava por ser um gigantesco e luxuoso iogurte com a data de validade bem gravada na lombada. Ir buscar-lhe ideias era tentador, mas levava inevitavelmente a que alguém sussurrasse: “Não acredito! Aquele boi também usou o Milton Glaser!”