sexta-feira, julho 30, 2004

Where The Streets Have No Name

Durante a Segunda Grande Guerra, as autoridades inglesas, receando sensatamente uma invasão Nazi, retiraram todos os sinais de trânsito e placas com nomes de ruas, com o objectivo de confundir e desorientar o inimigo. Recuperando o espírito peregrino desta iniciativa, a Câmara do Porto resolveu instalar novas placas toponímicas.

São umas coisas verdes, feitas em plástico recortado a imitar ferro forjado e têm o nome da rua escrito naquelas letras ultra-condensadas que se viam no final dos anos oitenta (género logotipo do Público).

Quanto à legibilidade — e tentando manter uma crítica construtiva — só posso dizer que são discretas. Fiz alguns testes com a ajuda de um amigo; a leitura é óptima se treparmos às caleiras instaladas previdentemente pelos serviços camarários; testamos a coisa a partir de um carro em movimento, mas não podemos revelar os resultados enquanto não houver resposta da seguradora.

Concluindo, só me resta apelar ao espírito de luta que caracteriza os habitantes da Invicta. Agarrem nas vossas chaves de parafusos, nas vossas caçadeiras, nos vossos canivetes e arranquem essas coisas da parede. Lavem-nas, pintem-nas e ofereçam-nas aos turistas para servirem de base para as travessas.

É a única maneira de salvar o bom nome da cidade.

quarta-feira, julho 21, 2004

Detalhes

Dois dias antes do salário vir, comprei Austerlitz de W.G.Sebald com os últimos doze euros. Valeu a pena o sacrifício.

Era uma tradução inglesa do alemão original e, ao folheá-lo, reparei imediatamente no entrelinhamento e margens anormalmente generosos. Talvez o designer tivesse decidido fugir às regras acanhadas do paperback comum. No entanto, embora as margens amplas fossem agradáveis, o leading excessivo era ligeiramente incómodo, ameaçando a unidade da mancha de texto.

Pus de parte as minhas obsessões profissionais de designer, encolhi os ombros e comecei a ler. Era um livro realmente hipnótico, com um fio narrativo aparentemente disperso, mas que agarrava de maneira quase compulsiva.

Em muitas páginas apareciam fotografias que correspondiam a lugares ou objectos relacionados com a narrativa. Estranhamente, apesar da sua aparência documental, conseguiam tornar a história ainda mais fantasmagórica e estranha.

Li sessenta páginas nas primeiras duas horas. No dia seguinte, li mais cem. Nessa altura entendi a razão da fluidez da narrativa (e do leading excessivo e das margens grandes). Folheei o livro até ao fim só para confirmar: era um único e ininterrupto parágrafo de quatrocentas e treze páginas, que uma boa escrita e os cuidados do designer tinham ajudado a suavizar até ao ponto de nem repararmos.

quinta-feira, julho 15, 2004

Design & Crime & Detectives

Se encontrar teoria sobre design é difícil, encontrar ficção sobre design é quase impossível. No entanto, nada estimula o coleccionador obcecado como a escassez e, naturalmente, um dos meus passatempos menos bem sucedidos é descobrir (e ler) este género raro de literatura.

Por incrível que pareça, há mesmo quem se dedique a escrever narrativas sobre design cujos heróis são designers ou pessoas ligadas ao design. Os autores costumam ser também designers e o aspecto dos livros ganha com isso.

Um dos melhores exemplos é A Heartbreaking Work of Staggering Genius de Dave Eggers, designer e editor da revista McSweeney's. Mesmo que não se aprecie o estilo bombástico mas escorreito, vale a pena dar uma olhadela à coisa. Embora pareça um vulgar paperback de aeroporto está recheado de trocadilhos gráficos, entre os quais uma falsa ficha técnica, trinta e tal páginas de agradecimentos ( que incluem uma lista de metáforas usadas no livro, uma relação de custos e o desenho de um agrafador). Do ponto de vista narrativo, é autobiográfico mas bastante legível, tendo o interesse acrescido de falar da vida profissional de Eggers enquanto editor e designer.

Na mesma onda, há The Cheese Monkeys de Chip Kidd, cuja acção decorre numa Escola de Design nos anos cinquenta. O aspecto do livro é impressionante e — ainda por cima — tem ilustrações do Chris Ware. Não posso falar da história em si porque não o li (em breve, em breve). Segundo parece, estes dois livros foram escritos directamente no QuarkXpress — o que poderia levar alguns escritores a afirmar que qualquer pessoa com um processador de texto pode escrever um livro.

Mas — até agora — o meu livro favorito de Design-Fiction chama-se Pattern Recognition e não foi escrito por um designer. O seu autor é William Gibson, mais conhecido pelas suas histórias de ficção científica de antecipação dedicadas a hackers e ao ciberespaço (foi ele que inventou o termo).

Pattern Recognition, ao contrário dos anteriores livros de Gibson, não acontece no futuro, embora seja tecnológico quanto baste. Existem outras diferenças importantes: a sua heroína, Cayce Pollard, não é uma hacker. Ela ganha a vida graças a uma sensibilidade mórbida a logotipos e modas. Ela é literalmente alérgica a marcas bem sucedidas. Para poder usar roupas tem que cortar ou lixar todos as etiquetas e botões. Um dos personagens descreve-a como uma 'designer free zone'; a sua psicanalista diz que ela consegue intuir 'comportamentos altamente codificados'. Agências publicitárias contratam-na para avaliar a viabilidade de identidades corporativas e descobrir novas tendências. Ela é uma cool-hunter nata, uma actividade que existe realmente e que é descrita com algum pormenor por Naomi Klein em No Logo.

A história começa pouco depois do 11 de Setembro. O pai de Cayce, um ex-espião da Guerra Fria, desapareceu nas Torres Gémeas e ela procura consolo numa série de filmes colocados na net por um autor anónimo. O carácter intemporal e anónimo das imagens fascina-a e, eventualmente, é contratada por uma agência de publicidade radical e 'pós-nacional' para encontrar o criador da misteriosa 'Filmagem'.

Pattern Recognition é uma nova forma de livro de detectives, como o seu próprio título parece indicar. Existem pistas, um mistério e não estamos muito longe dos cadáveres na biblioteca vitorianos — mas a semelhança não é evidente: ninguém morre e o que está a ser investigado não é um crime, mas uma nova forma de marketing, embora envolva pessoas pouco respeitáveis.

Gibson já tinha actualizado a figura do detective sob a forma do hacker ciberpunk. De resto, as duas figuras tinham interesses comuns que se foram tornando óbvios com o tempo. Se os investigadores vitorianos como Sherlock Holmes descodificavam comportamentos sociais e diferenças de classes, os hackers futuristas eram especialistas na mecânica algorítmica dos códigos que estendiam por vezes à social-engineering. De certa maneira, cada um lidava com manipulações e interpretações de signos, sendo uma manifestação do interesse popular por códigos.

No caso de Cayce, o código em questão é o design e a publicidade. No entanto, a capacidade de Cayce não é analítica, é uma intuição física, patológica, que não consegue controlar. Isto torna-a um personagem atraente por duas razões: por um lado, ela consegue 'ver' a nossa cultura sem recorrer a mediações culturais, ao contrário do comum dos mortais que precisa de aprender a 'lê-la'. Por outro lado, esta 'super-visão', pelo seu carácter negativo e doentio, coloca-a fora do alcance da cultura e do seu omnipresente design (ela é uma 'designer free zone').

Muitas das preocupações de Gibson encontram paralelos no design contemporâneo. O percurso de Cayce ecoa o de Naomi Klein em No Logo, embora as conclusões sejam mais ambíguas. A sua fuga a um design que, longe da invisibilidade doutros tempos, se dedica a viver da exibição auto-referencial dos seus processos e autores, tem paralelos no anti-design contemporâneo e nas obsessões vernaculares que pontuam a teoria do design nos últimos vinte anos.

Cayce está na fronteira entre o design e o seu exterior — uma posição invejável, mas que a leva a questionar-se eticamente. Como ela própria tem consciência, a sua actividade de cool-hunter reclama para o capitalismo global coisas que eram previamente cruas, invisíveis e talvez mais puras. Quer encontrar o misterioso autor, mas sabe que quando o encontrar este se tornará em mais um produto de consumo e design. A sua busca de autoria nas frestas cada vez mais apertadas e perigosas da economia de signos global é também uma interrogação sobre os limites actuais da criação estética, do design e dos designers.

terça-feira, julho 13, 2004

Traduções

Existe um snobismo marcadamente português que se manifesta numa crítica desproporcionada e feroz de todos os actos de tradução. O intelectual português pratica com gosto o passatempo mesquinho de apontar os erros e deselegâncias de tradução do outro intelectual português. Os designers, que nunca chegaram a acordo sobre a tradução do nome da sua própria profissão, são os maiores praticantes desta modalidade em Portugal.

A edição portuguesa do Ensaio sobre Tipografia de Eric Gill, é duplamente vulnerável a estes ataques ao colocar a questão da tradução do design gráfico de um objecto, sobretudo quando se toma a opção polémica de não seguir exactamente a edição original. No entanto, existem bastantes razões para respeitar este livro. Entre elas: a responsabilidade e franqueza com que as decisões de design foram tomadas e o próprio livro que, mesmo que não fosse um objecto raro no panorama editorial português, continuaria a ser muito bem feito.

Regra geral, um texto traduzido fica apenas com um significado adequado; quando se tenta traduzir um texto e o seu design os obstáculos multiplicam-se. Há regras ortográficas dentro de cada língua que dizem respeito à própria disposição do texto na página. Um bom exemplo, dentro do Português, é o hífen duplo usado quando uma palavra composta (eg: guarda-chuva) é dividida na mudança de linha. Programas de paginação, como o Quark Xpress ou o Adobe InDesign, não levam em conta esta regra, tornando a vida dos designers portugueses incorrecta, ou simplesmente difícil, dependendo da sua força de vontade.

No caso particular deste Ensaio, acontece uma situação semelhante: a substituição pontual do ‘e’ por ‘&’ ao longo do texto. Os tipógrafos ingleses da época de Gill embirravam com a palavra “and” e propunham a sua substituição pelo “&”, a que chamamos “e comercial” e que é na verdade uma abreviatura da palavra “et” do latim. O “and” é uma palavra demasiado comprida — três caracteres — e era obviamente vantajoso substitui-la em algumas situações por um único caracter. O uso do mesmo critério em português é questionável, uma vez que estamos a substituir um caracter de uso comum por outro mais estranho e com funções muito específicas — além dos dois terem quase o mesmo comprimento. Ao ler muitos dos manuais de tipografia, como por exemplo o Finer Points de Dowding ou o Elements of Typographic Style de Bringhurst, não encontramos uma separação visível entre gramática, ortografia e tipografia. Tendo em conta que muito do pensamento tipográfico português é importado por vezes confunde-se regras ortográficas de outras línguas com convenções tipográficas.

Além de todos os problemas culturais e linguísticos, Portugal também não tem uma tradição forte de design editorial e, fora dos meios académicos ligados ao ensino desta área, reina o empirismo mais bacoco, tornando muito difícil fazer vingar um design que tenha em conta — ou pelo menos não desminta — o texto original. Como de costume, não é difícil encontrar maus exemplos: quando se traduziu recentemente o livro No Logo de Naomi Klein, com design de Bruce Mau, trocou-se a Rotis SemiSans arriscada (mas bem sucedida) do original por uma fonte estilo Times-corpo-doze, sacrificando totalmente o grafismo afirmativo e irónico da edição americana por um grafismo genérico e insonso.

Num livro sobre tipografia, considerações de formato e estilo podem entrar em conflicto com o que se prescreve no próprio texto: na reedição recente do livro de Geoffrey Dowding, Finer Points, são muito raras as páginas onde a disposição do texto não contradiz o que esse mesmo texto diz. Na edição portuguesa do Ensaio optou-se por não usar a justificação à esquerda em ‘bandeira’ do original, aconselhada pelo próprio Gill n’A Cama Procrusteana, um dos seus mais conhecidos ensaios. João Bicker, numa nota prévia, explica que o seu uso seria injustificado na língua portuguesa (curiosamente, a razão dada para os “&” referidos mais atrás é estética). Parece improvável que existam regras do bom português contra o alinhamento à esquerda; os livros de texto paginados desta forma são igualmente raros em outras línguas. Parece-me que se trata apenas de cumprir uma convenção tipográfica bastante internacional e não de um problema especificamente português.

Neste momento, por razões mais preguiçosas que as de Gill, a justificação à esquerda tornou-se na muleta dos designers para paginar rapidamente. Promovido por Gill como um procedimento racional para poupar trabalho ao tipógrafo e ao leitor, é agora visto como indício de paginação apressada. É o ‘depressa e o melhor possível’ dos designers. Contra esta tendência existe uma contracorrente tradicionalista que aposta num estilo de paginação assumidamente rigoroso. A maioria dos especialistas portugueses de tipografia procura este tipo de elegância, cujo modelo é o The Form of The Book de Tschichold, que estabeleceu o cânone da publicação académica portuguesa sobre tipografia a que esta edição sem dúvida pertence: proporção de página de 2/3; proporções e dimensões da mancha de texto definidas pelo esquema de Villard de Honnencourt; justificação em bloco, etc.

Naturalmente, assumir decisões deste género tem consequências dramáticas no aspecto geral do livro: o formato original era bastante mais oblongo, com uma mancha de texto de dimensões equivalentes às da edição portuguesa, criando margens muito mais estreitas. A irregularidade assimétrica do texto justificado à esquerda compõe-o, não em relação à moldura branca das margens, mas em relação ao próprio rectângulo da página. A opção pela justificação em bloco na edição portuguesa implica necessariamente um corpo mais pequeno e uma composição mais delicada, fortemente hifenizada, enquadrada pela moldura rigorosa das margens, mais definidas e amplas que as da edição inglesa.

Existe ainda um problema mais súbtil de tradução que acontece quando se tenta reeditar fielmente um livro sobre tipografia de uma época remota. Muitas decisões tipográficas têm fundamentos em limitações e possibilidades técnicas que se tornam obsoletas ou triviais com o passar do tempo. Tentar emular condições tecnológicas desaparecidas pode exigir aos reeditores uma autêntica investigação filológica e, se esta preocupação de verosimilhança for levada até às últimas consequências, pode-se criar livros de produção dispendiosa, cujo único luxo é terem sido feitos com as técnicas mais baratas e massificadas de outros dias.

Sem chegar a tais extremos, publicou-se recentemente uma tradução americana da Neue Typographie de Jan Tschischold por Ruari McLean, que consegue ser muito fiel ao original alemão de 1928. Recorreu-se a fontes, disposições de página, tipos de papel e de encadernação semelhantes, sendo a única concessão contemporânea a composição usando computador e a impressão com meios actuais. Um caso menos rigoroso é a reedição inglesa do Ensaio sobre Tipografia onde — não se pondo o problema da língua — se optou por fac-similar o texto original, transformando-o numa imagem, mas o resultado é esborratado e alguma palavras mais chegadas às margens são cortadas no limite da imagem.

Concluindo, todas estas considerações demonstram como traduzir um livro de design para outra língua e outra época é uma tarefa difícil e ingrata, mas necessária. Na edição portuguesa do Ensaio, tomaram-se decisões com as quais se pode discordar, mas é impossível não louvar a responsabilidade e clareza com que foram tomadas.