segunda-feira, setembro 26, 2005

Três Dias Noutra Cidade

Participar na Experimenta foi intenso: três dias a falar e a pensar sobre design, no meio dos nomes sonantes e do público crítico e interessado. Também foi ligeiramente frustrante, porque soube a pouco - mesmo com todos os eventos, debates e exposições. Tenho a sensação - talvez errada - que, no design português, o de comunicação é o que conta com mais praticantes. No entanto, dentro desta comunidade cada vez maior, a ausência de uma esfera pública é manifesta, continuando a não haver eventos ou publicações regulares. Nesta Experimenta - a primeira onde o design gráfico teve mais cobertura - as salas estiveram apinhadas, provando a existência de um público que se mobiliza de todos os cantos do pais para ver gente a falar sobre design de comunicação. Fazem falta, portanto, mais iniciativas nacionais nesta área.

De maneira geral, gostei de participar na Open Talk dedicada ao tema Catalysts. Levantaram-se questões importantes, como a comparação recorrente entre design e arte; as diferenças éticas entre o design amador e o design profissional; a recepção e reencenação local de discursos e problemáticas globais, por exemplo. No entanto, penso que o debate teria beneficiado de uma moderação mais eficaz, mais editorial, que conseguisse manter uma continuidade entre as intervenções.

À tarde, as conferências foram excelentes. Pessoalmente, preferi a de Rudy Vanderlans que cobriu o percurso da revista Emigre, desde o começo até ao próximo número, que será o último. O tom foi nostálgico - talvez a palavra certa seja “perplexo”. Falou das críticas demolidoras que recebeu ao longo dos anos; mostrou cartas elaboradamente insultuosas ou simplesmente grosseiras, de designers conhecidos ou de leitores anónimos. Ao ouvi-lo tive a consciência que, aqui em Portugal, consumimos o debate do design já muito digerido e embalado, esquecendo todo o investimento pessoal, todas as emoções e frustrações envolvidas. Há uns tempos, alguém me disse que ainda não havia condições para um verdadeiro debate sobre o design em Portugal - porque ainda não havia maturidade, porque as pessoas ainda eram agressivas, não sabiam discutir, etc. Ouvindo Vanderlans apercebi-me que, se existe realmente alguma vantagem lá fora, é haver dez vezes menos condições do que aqui.

As pessoas com quem falei entusiasmaram-se mais com a conferência do Stephan Sagmeister, que também foi muito boa. Falou da Felicidade - um daqueles temas que podem dar espectacularmente para o torto - e fez bastante mais do que safar-se: convenceu, provocou e inspirou. Mostrou trabalhos dele e dos seus alunos em que os esquemas, métodos e formatos aceites do design gráfico eram problematizados. Um bom exemplo é o projecto do cartaz para os prémios da Adobe. Aqui o processo de trabalho habitual é subtilmente invertido e criticado: é mostrada ao cliente uma versão digital bem acabada e limpinha que serve apenas de esboço de aprovação à versão final suja e lo-fi. O design de Sagmeister é ao mesmo tempo elegante e mal-amanhado de uma forma eficaz, mas difícil de descrever, contrastando muito com a limpeza e neutralidade da maioria do design actual. É um design problemático, no melhor sentido do termo.

À noite, a exposição Catalysts deixou-me com sensações ambíguas. Por um lado, muitos dos trabalhos expostos eram realmente incontornáveis, por outro, já conhecia muitos deles e acabei por reagir mais à sua presença física naquele contexto do que às qualidades individuais de cada um. Em geral, fiquei com a sensação que o design gráfico funciona mal no contexto expositivo; perde muita da sua força e quase toda a sua especificidade, precisando de grandes cuidados de comissariado. Trabalhos de grande impacto transformam-se facilmente em impressões coladas sobre Kapaline de aspecto escolar ou em artigos de decoração emoldurados que ficariam bem na sala de estar de um director criativo. Apesar de tudo, a revista da exposição, apoiando-se em textos sobre o tema do designer como catalisador e em alguns dos trabalhos apresentados, acabava por fornecer parcialmente o fio narrativo que não transparecia na própria mostra,

Nos dias seguintes, ainda fui a mais algumas exposições e eventos, embora poucos directamente relacionados com design gráfico. Na S*Cool Ibérica, além de coisas que eu já conhecia - o trabalho do Rui Silva, por exemplo, onde ideias situacionistas eram aplicadas ao conceito de copyleft -, chamaram-me a atenção uns posters com tipografia recortada em carne crua sobre fundo branco, feitos por duas alunas de Barcelona. A temática da exposição era consistentemente anti-consumista - não sei se por esforço concertado, ou por simples zeit-geist - mas o dispositivo cénico inspirado em salas de aula da primeira classe, com carteiras e quadros negros era um pouco excessivo, abafando o tom engagé da maioria dos trabalhos num ambiente de rebelião juvenil inconsequente.

Durante isto tudo - como seria de esperar - fiquei com uma vontade atávica de consumir (livros sobre design, claro). Tinha alguma esperança que durante a Experimenta houvesse mais oferta a este nível, mas a cidade parecia particularmente depenada. Antes da Open Talk estavam a oferecer no átrio a revista francesa étapes: international #2 (traduzida integralmente para inglês). Foi uma oferta generosa, porque tenho andado a apreciar bastante os artigos e o preço de venda original é 29,95 ¤ - que parece ser uma espécie de valor mínimo universal para a venda dos livros e revistas de design. Fora da Experimenta, arranjei na Fnac uma edição do tratado de tipografia Champ Fleury de Geofroy de Tory, o War and Peace in the Global Village de Mcluhan e Fiore, e alguns livros de W.G. Sebald, com a habitual relação entre texto e imagem. No campo da politica e da intervenção, aproveitei para consolidar a minha colecção de livros do Edward Said (havemos de falar dele) e do António Negri (idem).

Em geral, foi uma boa experiência, que podia ser mais regular e generalizada. Já era altura das grandes instituições culturais - penso em Serralves, por exemplo - incluírem na sua programação mais eventos dedicados ao design de comunicação nacional e internacional.

terça-feira, setembro 06, 2005

Design como Moralismo

É muito frequente pensar-se que o design só pode ser ético se trabalhar para clientes éticos ou se utilizar matérias-primas éticas. Dito por outras palavras, o design assume o valor moral daquilo em que toca, mas permanece eticamente neutro na sua essência (curiosamente, isto só acontece quando as coisas correm bem - quando o cliente não é ético, o problema costuma ser dele). O design é ético quando salva baleias, usa papel reciclado ou trabalha para organizações não-governamentais; é neutro em todas as outras ocasiões.

Mas se o design é neutro, o designer pode ter as suas convicções pessoais, que devem, no entanto, ser deixadas em casa. O designer deve exercer a sua profissão de forma isenta, fazendo o melhor trabalho possível, independentemente dos seus valores morais, políticos ou ecológicos. Se o designer quer ser ético, que dedique uma parte do seu tempo livre a trabalhar para as causas referidas mais acima.

Esta é uma maneira muito comum - e confortável - de ver as coisas, mas esbarra num pequeno problema: o design não é, nem nunca foi uma actividade eticamente neutra. Sempre se assumiu como uma moralização da produção e do consumo de objectos. Isto está bem patente nos textos canónicos do design gráfico e no discurso do designer comum, na forma como justifica as suas opções e defende a pertinência da sua profissão.

Não existe nada de particularmente científico, por exemplo, na necessidade de relacionar forma e função. A ideia de função ou de utilidade não é um valor absoluto, determinável cientificamente; quando tentamos determinar o que é ou não é útil resvalamos bem depressa para o terreno da ética - de facto, nunca de lá saímos. Em The Shape of Things, Vilém Flusser demonstra bem que a noção de utilidade dentro do design depende de escolhas morais, que nunca são absolutas ou estáveis. Recuperando uma expressão de Marx, uma das funções do design é precisamente “fetichizar” a utilidade - e por arrasto a própria ética -, fazendo com que pareça uma característica dos próprios objectos.

Muitos autores clássicos não têm grandes problemas em relacionar directamente design - e mesmo decoração - com qualidades morais. No The Stones of Venice(1853), John Ruskin relacionava o design dos objectos industriais e as qualidades humanas de quem os produz e consume. Estabelecia a necessidade de criatividade (Invention) na elaboração e produção dos objectos industriais, como essencial à manutenção da integridade da alma humana. Para Ruskin, um estilo de decoração era considerado indício suficiente dos valores morais da sociedade que o produziu. Considerava a perfeição de acabamento, por exemplo, como sintoma de inumanidade.

Em Ornament and Crime(1910), um texto fundador do modernismo na arquitectura e no design, Adolf Loos afirmava de maneira violenta que a presença de decoração é imoral numa sociedade “civilizada”. Chegava ao ponto de dizer que “se uma pessoa tatuada morre em liberdade, é porque morreu antes de ter assassinado alguém”. Em Loos, a relação forma/função revela bem a sua verdadeira natureza de imperativo moral. A pureza modernista aproxima-se aqui de um outro tipo de “pureza”, bem mais infame.

Bastante mais tarde, em 1981, quando Joseph Muller-Brockmann, justifica a utilização do Estilo Tipográfico Internacional - o estilo neutro e científico por excelência -, no Grid Systems, ele diz que “a apresentação sistemática de factos, sequências de acontecimentos, e soluções de problemas deveria, por razões sociais e educacionais, ser uma contribuição construtiva para o estado cultural da sociedade e uma expressão do nosso sentido de responsabilidade (itálico meu)”, afirmando efectivamente que o Estilo Suíço pretende ser uma representação de qualidades éticas.

Por último, pouca gente se lembra que o subtítulo do The Form of the Book, de Jan Tschichold é An Essay on the Morality of Good Design.

Lidas agora, todas estas afirmações fazem-nos sorrir. É fácil considerarmo-las como caprichos dos autores ou da sua época, que envelheceram mal e devem ser ignoradas numa leitura actual. Em alternativa, podemos levá-las a sério e perguntar se o design perdeu realmente essas tonalidades morais ou se elas se “naturalizaram” de tal maneira que deixamos de dar conta delas.

A pretensão de neutralidade dos designers é, na prática, uma ética deontológica, baseada no cumprimento rigoroso de regras, independentemente das consequências possíveis. Atribuir responsabilidades mais alargadas neste contexto, torna-se bastante difícil -toda a gente pode alegar que se limitou a cumprir as regras. Actualmente, as éticas consequencialistas, onde os resultados são mais importantes que as regras ganham popularidade, como demonstram os livros do filosofo Peter Singer, onde este ponto de vista é defendido em contextos práticos (Ética Prática, Um Só Mundo, por exemplo).

Hoje em dia, o design procura adaptar-se a estas novas maneiras de atribuir responsabilidades, e uma das formas mais eficazes - embora mais questionáveis - de o conseguir é limitar a ética a um tema ou subgénero do design, ou então deslocalizá-la para determinados clientes, públicos e matérias-primas. O resto do design pode então afirmar confortavelmente a sua neutralidade em relação a estas posições minoritárias e alternativas.

Em última análise, o design continuou a desenvolver novas maneiras de “coisificar” a ética, continuando a tentar atribuir qualidades morais a estilos e objectos. Esta “coisificação” ultrapassa a produção e estende-se ao consumidor. A ideia de transformar a ética numa modalidade de consumo - no fundo, num produto - é bastante conveniente: podemos ser mais ou menos éticos de acordo com a nossa lista de compras.

A grande consequência disto tudo é que as preocupações éticas começaram a ser consideradas exteriores ao próprio design. É claro que o designer continua a ter as suas convicções pessoais, mas será que as pode assumir enquanto designer? E se o design não pode representar convicções, oferecendo apenas simulacros formais desprovidos de significado, então qual é a sua utilidade? Se o designer trabalha independentemente das suas convicções e das consequências sociais, politicas e ecológicas do seu trabalho, como pode ele ser responsabilizado pelo que quer que seja?