segunda-feira, março 29, 2004

Incompreensão

Sempre que vejo a palavra Design escrita na capa de um livro que não conheço, abro-o, folheio-o; se lá dentro só encontrar cadeiras, volto a pô-lo na estante. A maioria dos livros portugueses de design sofrem do mesmo mal que alguns cinemas: excesso de cadeiras.

Quando se fala de design em Portugal, quer-se dizer mobiliário ou imobiliário, mas raramente algo tão intelectual como uma publicação. Se calhar tem a ver com a nossa mentalidade terra-a-terra, de alfabetização recente, capaz de apreciar o bom desenho de uma casa, carro ou mesmo peça de roupa mas não consegue estender essa consideração a objectos menos utilitários e duradouros como revistas ou livros.

O Equipamento, a Moda e a Arquitectura são as modalidades que o português mais associa à palavra ‘design’; no caso de letras impressas ou online, ele é materialista: o termo ‘design’, em relação a um livro ou revista, descreve quase sempre um objecto com aparência manifestamente luxuosa (entenda-se impressões a seis cores, vários papéis, cortantes, etc). Isto ficou bem demonstrado quando o Professor Marcelo Rebelo de Sousa recomendou, numa das suas montras de livros, a revista Egoísta como tendo um ‘Design cuidado’. A Egoísta tem realmente um aspecto de que se gastou dinheiro a fazê-la, no entanto as suas opções tipográficas são duvidosas: é usada uma fonte monoespaçada, onde cada caracter, tal como numa máquina de escrever, tem a mesma largura, seja ele um I ou um M. Isto só por si não é mau, mas quando se justifica o texto em bloco, provoca-se um espacejamento desigual entre palavras, esburacando o texto e contrariando a regularidade própria de uma fonte mono espaçada.

Com tudo isto não quero dizer que o design editorial é mais incompreendido que o Design de interiores, de moda ou de equipamento — afinal, a inocência do público português estende-se a todas as áreas do Design. Damos mais atenção às cadeiras e aos carros, aos vestidos e às casas por causa de um mal-entendido: estes são vistos como objectos materiais, investimentos, propriedades; os livros e as revistas são objectos espirituais. É feio julgar um livro pela capa e, naturalmente, interessa-nos mais o que está escrito do que o aspecto do que está escrito.

Desta maneira, para os mais pragmáticos, a tarefa do designer gráfico parece irrelevante porque se limita ao mero arranjo de artefactos produzidos por terceiros. Ele coloca textos de um escritor ao lado das imagens de um fotógrafo e dos desenhos de um ilustrador e mesmo as letras que ele usa foram inventadas por outros. Qual é a utilidade disto tudo? É preciso andar na escola para saber fazer isto?

A justificação clássica é funcional: o designer adequa uma publicação a quem a lê e a quem a produz. O formato e paginação devem reflectir as necessidades físicas do leitor— a sua acuidade visual, a sua velocidade de leitura e a posição em que o lê; também deve facilitar o fabrico dos objectos, tomando em conta os materiais de que é feito e as máquinas onde é produzido. Esta é uma tarefa perfeitamente respeitável, que mesmo os mais cépticos são obrigados a pelo menos ter em conta.

No entanto, um designer não se limita à optimização produtiva e ergonómica de objectos, as suas funções prolongam-se ao significado das formas que produz e reconfigura. O valor de um objecto não reside apenas na sua utilidade, mas na maneira como ganha significado em relação a outros objectos. O designer, seja ele de equipamento, gráfico ou de interiores, cria e gere a mais-valia semiótica dos objectos e ocupa-se dos significados produzidos pelas suas diferentes configurações. Poder-se-ia dizer que organiza todo o tipo de coisas como se fossem palavras numa frase. Os críticos dirão que nada de novo é criado. Num episódio do Terceiro Calhau a Contar do Sol, John Lithgow acusa um escritor de plágio; todas as palavras do seu livro já tinham sido usadas num dicionário de inglês.