quinta-feira, julho 15, 2004

Design & Crime & Detectives

Se encontrar teoria sobre design é difícil, encontrar ficção sobre design é quase impossível. No entanto, nada estimula o coleccionador obcecado como a escassez e, naturalmente, um dos meus passatempos menos bem sucedidos é descobrir (e ler) este género raro de literatura.

Por incrível que pareça, há mesmo quem se dedique a escrever narrativas sobre design cujos heróis são designers ou pessoas ligadas ao design. Os autores costumam ser também designers e o aspecto dos livros ganha com isso.

Um dos melhores exemplos é A Heartbreaking Work of Staggering Genius de Dave Eggers, designer e editor da revista McSweeney's. Mesmo que não se aprecie o estilo bombástico mas escorreito, vale a pena dar uma olhadela à coisa. Embora pareça um vulgar paperback de aeroporto está recheado de trocadilhos gráficos, entre os quais uma falsa ficha técnica, trinta e tal páginas de agradecimentos ( que incluem uma lista de metáforas usadas no livro, uma relação de custos e o desenho de um agrafador). Do ponto de vista narrativo, é autobiográfico mas bastante legível, tendo o interesse acrescido de falar da vida profissional de Eggers enquanto editor e designer.

Na mesma onda, há The Cheese Monkeys de Chip Kidd, cuja acção decorre numa Escola de Design nos anos cinquenta. O aspecto do livro é impressionante e — ainda por cima — tem ilustrações do Chris Ware. Não posso falar da história em si porque não o li (em breve, em breve). Segundo parece, estes dois livros foram escritos directamente no QuarkXpress — o que poderia levar alguns escritores a afirmar que qualquer pessoa com um processador de texto pode escrever um livro.

Mas — até agora — o meu livro favorito de Design-Fiction chama-se Pattern Recognition e não foi escrito por um designer. O seu autor é William Gibson, mais conhecido pelas suas histórias de ficção científica de antecipação dedicadas a hackers e ao ciberespaço (foi ele que inventou o termo).

Pattern Recognition, ao contrário dos anteriores livros de Gibson, não acontece no futuro, embora seja tecnológico quanto baste. Existem outras diferenças importantes: a sua heroína, Cayce Pollard, não é uma hacker. Ela ganha a vida graças a uma sensibilidade mórbida a logotipos e modas. Ela é literalmente alérgica a marcas bem sucedidas. Para poder usar roupas tem que cortar ou lixar todos as etiquetas e botões. Um dos personagens descreve-a como uma 'designer free zone'; a sua psicanalista diz que ela consegue intuir 'comportamentos altamente codificados'. Agências publicitárias contratam-na para avaliar a viabilidade de identidades corporativas e descobrir novas tendências. Ela é uma cool-hunter nata, uma actividade que existe realmente e que é descrita com algum pormenor por Naomi Klein em No Logo.

A história começa pouco depois do 11 de Setembro. O pai de Cayce, um ex-espião da Guerra Fria, desapareceu nas Torres Gémeas e ela procura consolo numa série de filmes colocados na net por um autor anónimo. O carácter intemporal e anónimo das imagens fascina-a e, eventualmente, é contratada por uma agência de publicidade radical e 'pós-nacional' para encontrar o criador da misteriosa 'Filmagem'.

Pattern Recognition é uma nova forma de livro de detectives, como o seu próprio título parece indicar. Existem pistas, um mistério e não estamos muito longe dos cadáveres na biblioteca vitorianos — mas a semelhança não é evidente: ninguém morre e o que está a ser investigado não é um crime, mas uma nova forma de marketing, embora envolva pessoas pouco respeitáveis.

Gibson já tinha actualizado a figura do detective sob a forma do hacker ciberpunk. De resto, as duas figuras tinham interesses comuns que se foram tornando óbvios com o tempo. Se os investigadores vitorianos como Sherlock Holmes descodificavam comportamentos sociais e diferenças de classes, os hackers futuristas eram especialistas na mecânica algorítmica dos códigos que estendiam por vezes à social-engineering. De certa maneira, cada um lidava com manipulações e interpretações de signos, sendo uma manifestação do interesse popular por códigos.

No caso de Cayce, o código em questão é o design e a publicidade. No entanto, a capacidade de Cayce não é analítica, é uma intuição física, patológica, que não consegue controlar. Isto torna-a um personagem atraente por duas razões: por um lado, ela consegue 'ver' a nossa cultura sem recorrer a mediações culturais, ao contrário do comum dos mortais que precisa de aprender a 'lê-la'. Por outro lado, esta 'super-visão', pelo seu carácter negativo e doentio, coloca-a fora do alcance da cultura e do seu omnipresente design (ela é uma 'designer free zone').

Muitas das preocupações de Gibson encontram paralelos no design contemporâneo. O percurso de Cayce ecoa o de Naomi Klein em No Logo, embora as conclusões sejam mais ambíguas. A sua fuga a um design que, longe da invisibilidade doutros tempos, se dedica a viver da exibição auto-referencial dos seus processos e autores, tem paralelos no anti-design contemporâneo e nas obsessões vernaculares que pontuam a teoria do design nos últimos vinte anos.

Cayce está na fronteira entre o design e o seu exterior — uma posição invejável, mas que a leva a questionar-se eticamente. Como ela própria tem consciência, a sua actividade de cool-hunter reclama para o capitalismo global coisas que eram previamente cruas, invisíveis e talvez mais puras. Quer encontrar o misterioso autor, mas sabe que quando o encontrar este se tornará em mais um produto de consumo e design. A sua busca de autoria nas frestas cada vez mais apertadas e perigosas da economia de signos global é também uma interrogação sobre os limites actuais da criação estética, do design e dos designers.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

conheces um fanzine espanhol chamado GRR ?

apesar de só conhecer os 2 últimos números, penso que os teus textos ficariam muito bem numa publicação idêntica.

luís

12:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

em vez de GRR referia-me a GRRR

um abraço

12:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

www.grrr.ws

8:46 da tarde  

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