terça-feira, agosto 29, 2006

O Respeitinho

Existem designers em Portugal sobre os quais não podemos dar uma opinião negativa. Não falo sequer de uma reacção dos designers visados, mas de quando alguém afirma que um trabalho não pode ser mau apenas porque foi feito por um determinado designer e que sugerir o contrário seria falta de respeito.

Ao folhear um livro do Neville Brody, do Peter Saville ou do Stefan Sagmeister, posso dizer “Gosto muito deste trabalho”, “Não tanto deste” e “Mesmo nada deste outro”, mas, nas discussões públicas sobre design português, é costume aceitar-se tudo em bloco. O próprio design português é defendido em bloco. Tudo ou nada. As razões apresentadas para justificar esta postura são várias, todas elas fanhosas – o design português ainda está a começar e é preciso apoiá-lo; ainda não há condições para criticar; é preciso ser qualificado para criticar; criticar é faltar ao respeito; etc. No entanto, a grande verdade continua a ser que, mesmo gostando realmente do trabalho de um designer, ou do design feito num determinado país, há sempre trabalhos menos interessantes, ou mesmo muito fracos (ninguém é perfeito).

Ora, eu não quero ser obrigado a defender em público um trabalho que acho fraco, simplesmente por ter sido feito por um designer português. Não gostar de uma coisa e poder dizê-lo em voz alta é bom e saudável. Não o fazer pode estimular a auto-estima a curto prazo, mas leva também às más surpresas do costume, que é alguém dizer que o rei vai nu, que o design português também está na cauda da Europa, etc. (Recentemente, isso aconteceu numa crítica da revista Eye à Experimenta Design, onde a exposição [P], representativa do design português dos últimos quinze anos, foi particularmente arrasada.)

Quando se compara o Design Português com o Design Inglês, Suíço, Francês, é preciso ter consciência que todos estes designs têm há muito uma produção crítica extensa. Qualquer designer que faça parte do cânone destes países já escreveu, já deu conferências, já foi alvo de críticas nem sempre positivas, já esteve fora de moda e já voltou. Poucos designers portugueses foram alvo deste género de atenção, e menos ainda estão habituados a que alguém ponha em causa o seu trabalho. No entanto, para que o design português cresça em qualidade é preciso que entre na esfera pública, o que significa que tem de deixar de acreditar que tudo o que é português é bom, para começar a ser mais exigente consigo mesmo. Aquilo que é digno de respeito não receia a exposição pública. O melhor design pode e deve ser discutido regularmente em público. O verdadeiro respeito não se impõe, é merecido.

terça-feira, agosto 22, 2006

O “Estágio”

Já foi há uns anos que ouvi pela primeira vez alguém defender a noção de um preço mínimo por trabalho de design. O designer em questão pretendia elaborar um abaixo-assinado onde exortava os designers a cobrar os seus trabalhos sempre acima de um determinado preço (um logótipo seria cobrado sempre acima do preço X; uma paginação acima do preço Y, igual para todos os designers portugueses). Ele argumentava que, de outra maneira, muitos clientes acabariam por preferir trabalho mais barato, mesmo que tivesse menos qualidade ou fosse realizado por designers amadores ou sem experiência, obrigando os designers profissionais a baixarem os seus preços para poder competir. Pelo contrário, com a criação de um preço mínimo, o cliente seria “encorajado” a escolher o designer com melhor qualidade.

Nunca mais ouvi falar do abaixo-assinado, mas na altura ocorreu-me que um preço mínimo impediria os jovens designers de usar uma das suas maiores vantagens, que é a disponibilidade – consciente ou inconsciente – para trabalharem por pouco ou nenhum dinheiro. Sem poderem concorrer com os recursos de uma firma já estabelecida, muitos jovens designers teriam que procurar emprego numa dessas firmas até terem recursos e experiência suficientes para formar o seu próprio estúdio, ou arranjar um emprego noutra área, trabalhando entretanto como designers nos tempos livres.

No entanto, numa economia de mercado não costuma ser legal fixar um preço mínimo. A Ordem dos Médicos, por exemplo, foi processada pela autoridade da concorrência quando tentou estabelecer um preço mínimo para os serviços médicos. Outro exemplo é a associação de designers americana AIGA que, nos seus estatutos, só pode aconselhar os designers a não trabalharem de graça; seria ilegal tornar isso obrigatório. Mas, mesmo sem recorrer a argumentos legalistas – e capitalistas – é fácil constatar que, se o trabalho gratuito é mal visto no contexto da concorrência entre firmas, é bastante bem aceite noutros contextos, sendo mesmo considerado um ritual de passagem quase obrigatório na formação de um jovem designer. Falo evidentemente dos “estágios” não remunerados.

Muitas firmas empregam jovens designers nos chamados “estágios” (por vezes não existe qualquer tipo de ligação a uma escola, o que torna a designação duvidosa). Por um lado, o “estágio” permite à firma realizar maior quantidade de trabalho, sem custos de produção acrescidos, aumentando portanto a sua margem de lucro. Por outro lado, a firma fornece ou completa a formação dada pela escola num ambiente “real” – se descontarmos a ausência de salário, claro. No entanto, esta formação limita-se muitas vezes a deixar os “estagiários” à solta, com acesso à biblioteca do estúdio, a equipamento de boa qualidade, etc. Como muitos destes primeiros empregos começam a meio do Verão, logo a seguir ao fim das aulas, é bem provável que o jovem designer nem sequer ponha os olhos no seu patrão durante os primeiros tempos.

O estágio não remunerado depende da credibilidade e qualidade do empregador. No entanto, se a maioria do trabalho do atelier começa a ser feito por jovens designers inexperientes e mal supervisionados que se despedem mal ganham alguma experiência, o resultado é que a qualidade média do trabalho produzido pela firma ao longo dos anos acaba por ser a de um jovem designer inexperiente. Desta maneira, e porque uma firma com muitos "estagiários" pode fazer muito mais trabalho, a prática do “estágio” acaba por baixar drasticamente a qualidade do mercado, impedindo firmas mais pequenas, formadas por designers mais experientes, de competir com grandes firmas que empregam grandes quantidades de mão-de-obra barata mas inexperiente.

Geralmente, a sobrevivência do jovem designer durante o “estágio” é assegurada pelos pais, acrescentando desta forma este custo ao das propinas e das outras despesas de educação, e contribuindo ainda mais para as dúvidas familiares em torno da utilidade da profissão do filho ou da filha – poder-se-ia dizer que o trabalho de muitas firmas de design é efectivamente subsidiado pelos pais dos seus trabalhadores. Em outras ocasiões, é o estado que subsidia a firma, ao abrigo de programas de apoio ao primeiro emprego, o que reduz ainda mais os riscos e custos da contratação. É claro que as firmas podem defender-se dizendo que não estão no negócio da caridade, mas, neste caso, o problema da justificação é afirmarem que estão no negócio da formação.

Uma das consequências do “estágio” é que, se as firmas oferecem formação em troca de mão-de-obra barata, a formação dada na escola precisa sempre de ser considerada insuficiente para poder manter os salários dos estagiários baixos ou nulos – na prática, os ateliers fazem concorrência às escolas, afirmando que a formação no “mundo real” só pode ser realizada num atelier, com trabalhos reais, fora do âmbito da escola. Portanto, uma das razões pelas quais as escolas não dão um acesso mais “realista” ao “mundo real” –a realização de trabalhos reais extra-curriculares remunerados ou não, por exemplo – é porque seria considerado competição pelos ateliers (já ouvi vários designers afirmarem que as escolas não deviam tirar trabalho aos nossos “colegas lá de fora que têm tanta dificuldade a encontrar trabalho”). No entanto, graças às novas leis de financiamento do ensino superior, as escolas não têm outro remédio senão avançar pelo mercado de trabalho adentro e começar a angariar clientes e projectos reais, o que vai mudar necessariamente o panorama dos estágios de design em Portugal, tornando-os mais dependentes de protocolos com as escolas, sujeitos a avaliação, etc.

Apesar de tudo, e para terminar com uma palavra de esperança, nem todos os estágios são maus. Geralmente os bons estágios são bem contratualizados – se não há dinheiro envolvido, isso é tornado bem claro desde o primeiro momento – e realizados sob supervisão competente e empenhada. Se o estágio também der oportunidade a uma progressão de carreira rápida e clara em direcção a um bom salário, ou – na ausência disso – a uma carta de recomendação que faça realmente diferença, melhor ainda.

(Naturalmente, é preciso lembrar que, se fixar um preço mínimo é difícil, a criação e divulgação de uma tabela de referência que permita aos designers conhecer o estado actual do mercado seria bastante útil, contribuindo para evitar os “estágios” mal amanhados e as situações de concorrência pouco claras.)

quarta-feira, agosto 16, 2006

O Direito à Burocracia

Recentemente, a AND e a APD entraram em guerra aberta. Tudo começou com um mail da APD contendo uma petição para apresentar à Assembleia da República. Segundo a APD, esta “petição assinala[va] uma situação anómala: uma classe profissional geradora de mais valias para a economia e cultura do país, com cerca de 10.000 licenciados, não tem um código próprio no IRS, devendo os profissionais inscrever-se como artistas indiferenciados.” Se a reivindicação fosse bem sucedida, os designers deixariam finalmente de ser obrigados a escrever “Outros Artistas Plásticos” nos seus recibos verdes, o que pode parecer insignificante a um não-designer, mas aliviaria uma das angústias existenciais do designer, que consiste em ser confundido regularmente com “artistas” e “arquitectos”.

Quando recebi a petição, não precisei de pensar muito antes de não a assinar. Na prática assinar implicava duas coisas distintas: concordar com a reivindicação e apoiar a APD. No primeiro caso, poder escrever “designer” nos recibos verdes tem provavelmente vantagens, mas não me tira o sono. É uma coisa que agrada a toda a gente, porque tem também o defeito menos evidente de não chatear ninguém. Limita-se a ser uma espécie de direito à burocracia; revela apenas que infelizmente muitos designers dependem de recibos verdes para sobreviver. No segundo caso, aquilo que conheço da APD resume-se a esta petição, aos seus estatutos e aos dois eventos públicos a que assisti: o primeiro, no Museu Soares dos Reis, foi uma desgraça completa, com o público a queixar-se de tudo, desde o design do evento, até aos próprios objectivos da associação; o segundo, na Faculdade de Belas Artes do Porto, foi mais profissional, embora a audiência de alunos tenha demonstrado bastante cepticismo em relação à necessidade de uma associação de designers, conforme se pôde constatar pelas dúvidas apresentadas na ocasião (e resumidas aqui).

Algum tempo depois de ter recebido o mail da APD, começou a circular um pdf, contendo uma carta aberta da AND, em que, de forma bastante dura, se acusava a APD de não ter feito nada nos trinta anos da sua existência, e, agora que se tinha decidido a fazer alguma coisa, se limitava a duplicar com pouca competência os esforços da AND. Avisava finalmente que a APD deveria reconsiderar “os termos em que a petição se encontra elaborada, por evidenciar manifesto desconhecimento do procedimento administrativo e por acarretar para a classe uma pouco abonatória exposição pública”. Depois de uma consulta ao seu site, fiquei a saber que a AND é sedeada na Guarda e que, pelos vistos, só os seus sócios podem exercer design em Portugal, o que de certa forma explica a agressividade da resposta (não me parece que os seus estatutos deixem muito espaço para duas associações de designers em Portugal).

No entanto, depois desta confusão toda, houve uma coisa que não ficou evidente: para quê uma associação de designers? Se o objectivo é fazer lobby pelos designers licenciados e protegê-los de ameaças exteriores, uma associação pode ser uma solução possível a curto prazo; mas, se essa protecção obtida por meios burocráticos não se reflectir positivamente na própria sociedade, nos hábitos e necessidades do público, vai parecer artificial e – numa época de crise e desconfiança institucional – desonesta.

De resto, os designers portugueses não precisam de ser assim tão protegidos do público, da sociedade, dos clientes, etc. Tal como já se disse neste blogue várias vezes, o design português não está no seu começo; não está ainda por definir; já possui o seu status quo; já possui alguma legitimidade institucional (baseada sobretudo nas escolas). Se não tem uma presença pública forte é porque não demonstra nem capacidade nem vontade para ser avaliado publicamente.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Alice

Nunca mais vi a Alice à venda, o que significa provavelmente que acabou. Era uma revista que me fazia ranger os dentes cada vez que a via (e sobretudo cada vez que a lia), mas comprei-a sempre, mais por irritação do que por convicção. Agarrava nela e folheava-a, resmungando que não a ia comprar, que não a ia comprar, até que algum artigo ou algum trejeito gráfico me irritava tanto que acabava por atirar os oito euros para o balcão e debandava dali para fora com a “coisa” enrolada debaixo do braço – suponho que este ritual masoquista me assegurou pelo menos o direito mais básico do consumidor que é queixar-se, queixar-se, queixar-se.

Os artigos da Alice oscilavam quase sempre entre o chico-espertismo trendy e o ensaio bem informado, mas graças à predominância dos primeiros, era bastante difícil entrar dentro do espírito da coisa. Toda a gente parecia estar a divertir-se imenso naquela revista, mas não era uma animação contagiosa; parecia que entrávamos sóbrios numa festa onde já se ia na terceira cerveja.

Na verdade muitos dos textos pareciam publicidade, não por gabarem qualquer coisa – geralmente gabavam –, mas pelo tom do discurso, que era “juvenil”, “positivo” ou “irónico”. Praticamente todos eram escritos por “criativos” e havia até quem chamasse aos seus próprios textos copy, numa espécie de lapso freudiano. No entanto, não se fique a pensar que me estou a queixar de excesso de tom publicitário numa revista de publicidade. Acredito apenas que a publicidade é uma coisa interessante sobre a qual se pode discorrer de maneira informada e fluente. E, se me disserem que, pelo contrário, o objectivo da Alice não era a reflexão profunda, mas a promoção ligeira, responderei que até a publicidade tem o direito a ser bem publicitada.

Apesar de tudo, ainda havia boas entrevistas e bons artigos de fundo – em especial os artigos de Maria João Freitas, por exemplo. Lá para o final notou-se mesmo uma vontade honesta de melhorar. O último número que li – o do Verão de 2005 – estava bastante acima da média. No entanto, mesmo nos melhores artigos e entrevistas, a abordagem era bastante superficial, pendendo para o artigo sobre estilo de vida. Dava por vezes mesmo a sensação que a publicidade – o tema da revista – atrapalhava os artigos mais interessantes, como na entrevista a José Gil, em que se falou de tudo um pouco, mas, ao longo de seis páginas, a única coisa sobre publicidade que conseguiram arrancar ao filósofo foi:

Não sou influenciável e acontece que quando passam os anúncios, desligo mentalmente e de forma automática, não sei porquê. Em França, tinha um amigo que era criativo numa agencia de publicidade. Eu acho que há uma inflação nas palavras criatividade, o conceito, há todo um conjunto de palavras que são muito fortes e que são utilizadas duma maneira quase leviana, pelos métodos que a própria publicidade – e note-se que não estou a criticá-la – emprega. São métodos eficazes, mas que simplesmente não têm a complexidade, longe disso, que tem o processo de criação de um pintor.

Jorge Silva, o director de arte da Alice, continua a ser, juntamente com Henrique Cayatte, um dos poucos directores de arte dignos desse nome em Portugal, mas sempre tive a sensação que trabalha melhor em contraponto – por vezes mesmo em oposição – a um projecto editorial consistente. No caso da Alice, e por todos os problemas editoriais referidos acima, a hipótese confirma-se. Ao nível da paginação e das hierarquias tipográficas a revista é contida, mas ainda assim indecisa. A fonte escolhida, sobretudo quando usada em itálico, não consegue produzir nem bons títulos, nem bons destaques, ficando muito longe da robustez gráfica dos melhores trabalhos de Silva – os suplementos do Público, o catálogo do Almada, e os catálogos dedicados à ilustração, por exemplo–, onde as diferenças de escala da tipografia, as cores, a escolha do papel e as ilustrações funcionam quase sempre de forma eficaz e inspirada. De resto, o ponto forte de Silva foi sempre a capacidade de combinar e ajustar o traço dos ilustradores à paleta de fontes e cores de uma publicação; no entanto, muitos dos artigos da Alice eram necessariamente acompanhados por imagens de campanhas publicitárias, não deixando muita latitude para a produção de ilustrações. Será que era mesmo necessário mostrar fotografias do interior das agências, com o mobiliário, a arquitectura fixe, e tudo o mais? Será que não era possível substituir também os retratos fotográficos perfeitamente convencionais por ilustrações?