quarta-feira, agosto 02, 2006

Alice

Nunca mais vi a Alice à venda, o que significa provavelmente que acabou. Era uma revista que me fazia ranger os dentes cada vez que a via (e sobretudo cada vez que a lia), mas comprei-a sempre, mais por irritação do que por convicção. Agarrava nela e folheava-a, resmungando que não a ia comprar, que não a ia comprar, até que algum artigo ou algum trejeito gráfico me irritava tanto que acabava por atirar os oito euros para o balcão e debandava dali para fora com a “coisa” enrolada debaixo do braço – suponho que este ritual masoquista me assegurou pelo menos o direito mais básico do consumidor que é queixar-se, queixar-se, queixar-se.

Os artigos da Alice oscilavam quase sempre entre o chico-espertismo trendy e o ensaio bem informado, mas graças à predominância dos primeiros, era bastante difícil entrar dentro do espírito da coisa. Toda a gente parecia estar a divertir-se imenso naquela revista, mas não era uma animação contagiosa; parecia que entrávamos sóbrios numa festa onde já se ia na terceira cerveja.

Na verdade muitos dos textos pareciam publicidade, não por gabarem qualquer coisa – geralmente gabavam –, mas pelo tom do discurso, que era “juvenil”, “positivo” ou “irónico”. Praticamente todos eram escritos por “criativos” e havia até quem chamasse aos seus próprios textos copy, numa espécie de lapso freudiano. No entanto, não se fique a pensar que me estou a queixar de excesso de tom publicitário numa revista de publicidade. Acredito apenas que a publicidade é uma coisa interessante sobre a qual se pode discorrer de maneira informada e fluente. E, se me disserem que, pelo contrário, o objectivo da Alice não era a reflexão profunda, mas a promoção ligeira, responderei que até a publicidade tem o direito a ser bem publicitada.

Apesar de tudo, ainda havia boas entrevistas e bons artigos de fundo – em especial os artigos de Maria João Freitas, por exemplo. Lá para o final notou-se mesmo uma vontade honesta de melhorar. O último número que li – o do Verão de 2005 – estava bastante acima da média. No entanto, mesmo nos melhores artigos e entrevistas, a abordagem era bastante superficial, pendendo para o artigo sobre estilo de vida. Dava por vezes mesmo a sensação que a publicidade – o tema da revista – atrapalhava os artigos mais interessantes, como na entrevista a José Gil, em que se falou de tudo um pouco, mas, ao longo de seis páginas, a única coisa sobre publicidade que conseguiram arrancar ao filósofo foi:

Não sou influenciável e acontece que quando passam os anúncios, desligo mentalmente e de forma automática, não sei porquê. Em França, tinha um amigo que era criativo numa agencia de publicidade. Eu acho que há uma inflação nas palavras criatividade, o conceito, há todo um conjunto de palavras que são muito fortes e que são utilizadas duma maneira quase leviana, pelos métodos que a própria publicidade – e note-se que não estou a criticá-la – emprega. São métodos eficazes, mas que simplesmente não têm a complexidade, longe disso, que tem o processo de criação de um pintor.

Jorge Silva, o director de arte da Alice, continua a ser, juntamente com Henrique Cayatte, um dos poucos directores de arte dignos desse nome em Portugal, mas sempre tive a sensação que trabalha melhor em contraponto – por vezes mesmo em oposição – a um projecto editorial consistente. No caso da Alice, e por todos os problemas editoriais referidos acima, a hipótese confirma-se. Ao nível da paginação e das hierarquias tipográficas a revista é contida, mas ainda assim indecisa. A fonte escolhida, sobretudo quando usada em itálico, não consegue produzir nem bons títulos, nem bons destaques, ficando muito longe da robustez gráfica dos melhores trabalhos de Silva – os suplementos do Público, o catálogo do Almada, e os catálogos dedicados à ilustração, por exemplo–, onde as diferenças de escala da tipografia, as cores, a escolha do papel e as ilustrações funcionam quase sempre de forma eficaz e inspirada. De resto, o ponto forte de Silva foi sempre a capacidade de combinar e ajustar o traço dos ilustradores à paleta de fontes e cores de uma publicação; no entanto, muitos dos artigos da Alice eram necessariamente acompanhados por imagens de campanhas publicitárias, não deixando muita latitude para a produção de ilustrações. Será que era mesmo necessário mostrar fotografias do interior das agências, com o mobiliário, a arquitectura fixe, e tudo o mais? Será que não era possível substituir também os retratos fotográficos perfeitamente convencionais por ilustrações?

2 Comments:

Blogger joao said...

E...?
Que seco que foi este post! É que nem me apetece comprar a Alice para ver como é. Desinformado podem dizer, eu prefiro cidadão comum.

PUB: Compra melhor, compra o meu!

9:39 da tarde  
Blogger superpiloto said...

Só comprei a Alice uma vez, foi o número de Inverno 2004/2005. Estava a fazer horas num centro comercial. A decisão tinha que ser rápida e a oferta não era grande. Naquela estante, foi a única coisa, que me pareceu que poderia ajudar-me a passar o tempo. Ao consumi-la fui assaltado pela sensação de estar perante uma publicação repleta de artigos-anúncios dos amigos da redacção (tipo-o-meu-amigo-é-mais-criativo-e-mais-fixola-que-o-teu-e-aqui-fica-o-contacto). Quando dei uma olhadela pela ficha técnica, fiquei mesmo admirado por ver que a direcção artística e o design eram da responsabilidade da silva!designers, porque o resultado era realmente mau e estes costumam fazer um bom trabalho. Mesmo assim, gostei da entrevista ao João Nuno Pinto, pela referida M. João Freitas.

Não acrescentei nada ao teu texto, mas pronto, fica o comentário.

11:20 da tarde  

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