quarta-feira, dezembro 22, 2004

Expectativa

Segundo parece, na emigre #67, Kenneth Fitzgerald vai enumerar alguns dos expedientes que os designers usam para evitar a crítica.

Mal consigo esperar. Se calhar ele vai falar da "Messianização Crítica", onde o visado assume que ninguém tem actualmente autoridade para o criticar. Nos casos mais modestos, chega a afirmar que nem ele próprio se poderia criticar. Não, provavelmente Fitzgerald não perderia tempo com um estratagema tão óbvio.

Mantendo a temática bíblica, ele poderia debater a "Terra-Prometida Crítica", um sítio onde existe um debate saudável, construtivo e regular por oposição ao local actual. É costume esse sítio ser a América (onde se trocam cartas explosivas, processos judiciais ou gatos mortos por dá cá aquela palha). Ou a Inglaterra (onde as polémicas e os rancores - e as cartas, os processos e os gatos - se arrastam publicamente por anos). Ou a Holanda (onde se abatem pessoas a tiro pelas mais variadas razões). Pelo contrário, em Portugal não há, obviamente, condições para haver crítica.

É provável que Fitzgerald prefira falar dos méritos retardantes da "Administração Cultural", onde não há crítica porque toda a gente está demasiado ocupada em reuniões, requerimentos e candidaturas cujo objectivo é criar condições para haver crítica (ou até cultura). Até lá, convém manter o consenso, cerrar os dentes e jogar em equipa.

Uma outra versão da "Administração Cultural" é o "Objectivo Consensual", que se traduz numa daquelas datas-logotipo (Expo98, Porto2001, Euro2004, etc). Pode desvalorizar-se ou mesmo silenciar-se a crítica antes da data expirar porque compromete o evento; depois do "prazo de validade" há tanta crítica que ninguém liga nenhuma.

Mas se Fitzgerald quisesse falar de um processo tão retorcido, tão inverosímil, tão improvável que ninguém no seu juízo perfeito o usaria de certeza (eu até tenho vergonha de o referir). Bom…se ele ousasse perder toda a sua credibilidade, ele falaria do método "Chinatown". Neste caso, o visado não faz nada. A.b.s.o.l.u.t.a.m.e.n.t.e. n.a.d.a. O segredo está em pôr isso no currículo da maneira mais clara possível. Se isso for bem feito, pode alcançar-se uma posição de autoridade inatacável (aquilo que não acontece, não pode ser criticado). Por exemplo, se se está a adiar uma investigação teórica há trinta anos isso pode (obviamente) contar como experiência profissional prolongada. O nome deste método evidentemente irrealista deve-se ao filme do mesmo nome, onde John Huston dizia que "os prédios, os políticos e as putas, todos eles ficam respeitáveis com a idade".

Enfim… tudo isto é ficção científica, pensamentos ociosos… e a emigre nunca mais chega…

sexta-feira, dezembro 17, 2004

E Mais Uma Vez, O Design Inglês

Uma pessoa avalia um objecto de design gráfico de fora para dentro, a começar pela lombada ou capa, depois olha com atenção o aspecto e composição das páginas e, finalmente, se for caso disso, lê a coisa. Para quem - como eu - não gosta de comprar na net, este processo é insubstituível. Permite namoriscar o livro, revista ou catálogo, mesmo sabendo que, na maioria dos casos, não se lhe consegue resistir. Graças a este hábito, no entanto, quase ia deixando escapar um bom livro sobre design, apenas porque o título na sua lombada é mais comprido (e graficamente ilegível) que os soundbites habituais: "Communicate: Independent Graphic Design since the Sixties".

É um catálogo editado por Rick Poynor para uma exposição na Barbican Art Gallery de Londres e reproduz algumas centenas de trabalhos de design britânico das últimas quatro décadas, organizados em várias secções temáticas ("Publishing", "Identity", "Arts", "Music", "Politcs and Society" e "Self-initiated projects") que incluem também entrevistas a alguns dos designers representados. Apesar da quantidade estonteante de imagens bem reproduzidas e altamente "inspiradoras" (vocês sabem o que eu quero dizer), a mais valia do livro assenta nos ensaios de Rick Poynor, John o'Reilly, Nico MacDonald e David Crowley.

O adjectivo "independent" do título é o conceito fundador de Communicate. Na introdução, Poynor afirma usá-lo com dois sentidos: o primeiro é quantitativo e descreve firmas pequenas, formadas por menos de meia dúzia de pessoas, diferenciando-as das grandes agências cotadas na bolsa, com organização corporativa, etc, etc; o segundo é uma definição mais ideológica e social e tenta descrever uma espécie de não-conformismo criativo.

A comparação com o nosso panorama nacional é injusta, mas inevitável e, tentando aplicar o modelo ao nosso "caso", depressa nos apercebemos que há em Portugal uma preponderância de pequenas firmas, mas que estas são bastante conservadoras e orientadas para o negócio, com excepções que se limitam quase exclusivamente à produção no contexto académico ou aos chamados mercados alternativos (arte, música, moda, etc).

Uma das possíveis razões para esta diferença de atitudes é a autonomia teórica do design inglês mantida através de revistas como a Eye, a DotDotDot, a Graphic, bem como um sem números de publicações, desde as mais promocionais às mais académicas. A importância desta actividade editorial é bem sublinhada no ensaio "Design magazines and design culture" de David Crowley e em "Spirit of Independence", do próprio Poynor, que traça uma história concisa do design gráfico independente inglês baseada sobretudo na evolução dos seus conceitos e da sua crítica.

Mas a ideia de uma independência crítica do design é levada um passo mais longe no ensaio "Thinking with Images" de John o'Reilly onde se fala da inadequação dos modelos herdados da crítica literária para compreender uma sociedade onde a imagem é cada vez mais importante. Seria necessária uma nova crítica da imagem, emancipada da crítica literária de inspiração estruturalista. Esta preocupação tem ganho força, como o demostram os últimos números da Emigre (em particular o #64).

Poder-se-ia pensar que esta independência toda isolaria o design da sua viabilidade comercial, instituindo uma espécie de elitismo artístico. Os autores de Communicate estão conscientes do perigo mas, logo no começo do seu ensaio, Poynor diz que"se a Grã-Bretanha, no final do século XX, se transformou num país onde a comunicação gráfica de primeira-classe está tão entranhada no quotidiano ao ponto do público a tomar como um dado adquirido, isto deve-se em grande parte ao (...) esforço [dos designers gráficos independentes]." Por esta afirmação podemos ver que esta "independência" não pretende afastar-se da sociedade, mas dos interesses comerciais ou corporativos.

Paradoxalmente, esta filosofia "anti-comercial" ajuda a promover não só o design inglês, como constitui uma espécie de imagem de marca da própria sociedade inglesa. A inclusão neste catálogo de objectos gráficos menos "canónicos" mas que ajudaram a estabelecer o british style - os livros dos Monty Python com design de Katy Hepburn, por exemplo - prova bem a ambição de afirmar o design gráfico como um agente de definição cultural e social à escala de um país.

Nota final: para quem lida com os aspectos mais "intelectuais" do design português, este livro é tão humilhante e avassalador como a primeira parte de um filme sobre invasões extraterrestres.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

O Problema e o Consenso

Durante muito tempo disse-se que o designer resolvia problemas. Nos últimos anos, o chavão foi actualizado e o designer começou a "promover consensos entre profissionais das mais diversas áreas". Os mais cínicos dirão que nada mudou; — são apenas coisas que se dizem e não afectam essencialmente a realidade.

De certa forma, os cínicos têm razão: o "designer que resolve problemas" não desapareceu, nem foi substítuido. O verdadeiro objectivo desta nova definição é clarificar aquilo que se tornou mais importante "resolver": os "problemas" pertenciam à esfera objectiva, ao mundo das coisas; os "consensos" já tratam explicitamente de pessoas, das suas opiniões e das suas emoções. Não é muito difícil perceber qual é a versão mais "interessante".

Nas sociedades capitalistas e/ou democráticas são sempre necessárias actividades de formação e manipulação das opiniões. Dizendo-se criador de consensos, o design reafirma a sua disponibilidade para assumir tais funções. Não é uma ambição nova — sempre existiu ao longo de toda a sua história.

O design é uma disciplina normativa e, essencialmente, criadora de conformidade. Seria possível afirmar que resolve problemas sem realmente os problematizar. Na realidade, não os resolve mas dissolve-os em soluções supostamente universais.

Não se pense também que esta "criação de consensos" se limita ao design que serve os interesses comerciais, políticos ou corporativos. É especialmente útil nas actividades culturais que são cada vez mais vistas como tarefas essencialmente administrativas, geridas por comissários e entidades corporativas e onde não há lugar para críticos ou descontentes.

Muito do design "alternativo" e "transversal" que tem aparecido não faz — nem pretende fazer — qualquer tipo de oposição, nem constitui uma vanguarda em relação ao design mais comercial. Limita-se a "lavar" objectos e conceitos mais extremos ou críticos, reencenando-os no contexto tendencialmente acrítico e definitivamente comercial do design.

Como evitar isto tudo? O antídoto tradicional para os consensos forçados costuma ser a consciência crítica…