quarta-feira, abril 21, 2004

Abril é Evolução

A supressão minimalista, quase tipográfica, de apenas uma letra vem inverter todo o sentido de um acontecimento histórico. É um trocadilho muito "design" (entenda-se "sofisticado" ou simplesmente "publicitário"). É o tipo de recontextualização que os designers e os copywriters gostam de engendrar. Neste caso, só chateia porque estamos a falar de coisas sérias ou (pelo menos) políticas.

O próprio design é o tema deste cartaz, poder-se-ia até argumentar. A fonte, arredondada e user-friendly, anunciaria facilmente um banco ou um telemóvel e não podia ser mais diferente das agressivas Univers Black Condensed da Revolução original. A imagem do cravo, repetida em quatro combinações cromáticas, é uma citação explícita das serigrafias de Andy Warhol, que por sua vez referenciam (e legitimam) a própria repetição industrial do design, elevando-a ao estatuto de arte. Até a composição do cartaz lembra um logotipo, com duas frases curtas e compactas alinhadas à direita pela imagem quadrada dos cravos. Nos anúncios televisivos, as estatísticas que pretendem ironizar o pessimismo português parecem tarifários de uma operadora telefónica. Toda esta coerência gráfica acaba por conseguir a proeza de recriar uma revolução como uma linha de produtos ou mesmo um estilo de vida, promovido através do testemunho de jovens empreendedores, bem sucedidos, artistas, etc.

Os criadores da campanha "Abril é Evolução" dirão que esta é apenas uma actualização necessária da imagem da Revolução dos Cravos para que uma geração nova a entenda. Mas uma mudança de imagem nunca é apenas uma mudança de imagem. Os designers e os copywriters sabem que um rebranding bem sucedido não é um acto neutro de actualização. Através de uma reinterpretação, uma situação popularmente positiva, que se tornou obsoleta e incómoda, pode ser reclamada por um novo status quo. Efectivamente, mesmo um olhar superficial sobre esta campanha percebe que não se trata de uma actualização ou rejuvenescimento, mas de uma verdadeira inversão ideológica através de um acto de design.

Talvez o design tenha sido a consequência derradeira destes trinta anos e este cartaz acabe por ser a própria mensagem que quer transmitir. Até a Revolução pode ser reduzida a merchandising.

terça-feira, abril 06, 2004

Mitologia do Design Gráfico: A Memória Descritiva

Até o nome engana: dá a sensação que vamos ficar a saber como aquilo tudo foi feito. Em vez disso, somos besuntados com uma mistura de discurso de presidente de junta de freguesia com Matilde Rosa Araújo e Eduardo Prado Coelho.

Apesar de tudo, existe uma certa ironia involuntária e inocente que as memórias descritivas partilham com outros géneros literários semelhantes, como a Declaração de Rendimentos e o Curriculum Vitae. As melhores Memórias Descritivas são como um strip-tease epistemológico. Manipulam o leitor, acenando-lhe com a promessa de que tudo vai ficar mais simples. A obra torna-se um mero isco, um anzol, que conduz o leitor às subtilezas bizantinas da Mente do Designer.

O leitor olha para a peça de Design propriamente dita e até acha piada. Pensa que "entende" a coisa. Depois pega na Memória Descritiva e começa a ler: uma introdução concisa data a origem e importância remota do projecto nos frescos de Pompeia e no Big Bang, com notas de rodapé que insinuam como podia ter evitado a extinção dos dinossauros, a revista Xis e o Paulo Portas. Atordoado com as possibilidades, o leitor fica ainda a saber que é possível usar na mesma frase "sinergia", "prótese", "articulação", "actual", "conceptual", "Primavera", "alteridade" e uma quantidade indeterminada de advérbios de modo. Nas cinco páginas seguintes, Gilles Deleuze é citado para afirmar que "o homem tenta dominar a Natureza"; Foucault e Umberto Eco contrapõem, respectivamente, que "homem prevenido vale por dois" e que "no Inverno costuma chover". Esta abundância de referências começa a dar a sensação precipitada que o autor é um presunçoso "name-dropper", citando por tudo e por nada, mas nas últimas duas linhas o leitor envergonha-se das suas suspeições ao saber que o projecto é na verdade uma descontextualização "site-specific" de uma "banheira comprada na Vandôma".

Concluindo (agora a sério): a maioria das pessoas pensa que qualquer desastre é válido e até interessante se tiver uma memória descritiva ao lado. Por exemplo:

Professor (apontando para o projecto): …é claro que se isto for posto em prática, noventa por cento da vida na Terra vai desaparecer.
Aluno (confiante): Eu sei, mas está tudo explicado na Memória Descritiva.

sexta-feira, abril 02, 2004

Palavras para quê?

Há uns tempos fui com uma amiga minha à Matéria Prima. A maioria das pessoas que lerem este texto na Cidade do Porto conhecem esse sítio. Só o descrevo por motivos atmosféricos: é uma daquelas casas burguesas do Porto, estilo habitação de velhota, que foi convertida num café-livraria-discoteca-sala-de-exposições. Fica numa rua onde existe um grande número de galerias de arte, no meio dos stands de automóveis e das mercearias.

Nesses lugares, sou irremediavelmente atraído pela mesa onde se expõem revistas e livros para venda. Pego numa revista e folheio. Modelos, velhotes em pose de modelo, modelos imitando operários e etc. Este tipo de publicação deixa-me atordoado e com uma sensação de infelicidade que não é de todo desagradável. No entanto, desta vez reparo num pormenor curioso. Pego em outra revista e comparo: é a mesma coisa. À terceira, tenho a certeza de que algo de estranho se passa.

Nenhuma das revistas tem uma só palavra. Continuo a folhear. O único texto que me aparece é um anúncio. Passo para a revista seguinte; com esforço descubro umas poucas palavras dando o nome do modelo fotográfico e o que ele veste.

Depois de alguma reflexão chego a uma conclusão surpreendente: neste momento, paga-se para não comunicar. Esta conclusão pede mais reflexão: normalmente, a comunicação é um valor positivo, uma coisa boa. Porquê a inversão?

Até ao século XIX, os trabalhores mais subalternos trabalhavam ao sol, logo as classes dominantes davam-se ao luxo de poder exibir a palidez; no século xx, os subalternos trabalham na sombra dos escritórios, logo as classes dominantes exibem o bronzeado. Neste momento, aquilo a que se costumava chamar proletariedado lida com a produção e reprodução industrial de informação, logo os objectos de luxo exibem uma ausência manifesta de signos.

Corre-se o risco de generalizar, mas a comunicação e o seu maior símbolo, a palavra escrita, não ameaçam o status quo, apenas o fortalecem. Antonio Negri e Michael Hardt referem que as grandes revoltas do passado deram lugar a acções que se escapam à comunicação internacional. Não são internacionais nem sequer transmíssiveis, Passam-se a nível local e não criam réplicas em outros países. Tudo o que não participa da comunicação torna-se um desperdício escandaloso. O maior defeito que se pode apontar a um objecto artístico é a incapacidade de comunicar. No entanto, a maioria dos objectos artísticos produzidos actualmente, são muito semelhantes a caixas negras, das quais nada sai, nem nada entra. Não se trata de arte meramente chocante por ser incompreendida; trata-se de arte que vive no final de um século dedicado à comunicação e que quer ser o oposto disso.

Parece que existe um novo analfabetismo – num sentido surpreendentemente literal –, uma desconfiança no discurso escrito, apoiada numa ideia de que existem experiências imersivas mais interessantes do que qualquer literatura. A palavra tornou-se demasiado comum em cidades forradas de cartazes, pintadas de graffittis, com outdoors de beira de estrada e de mensagens escritas sms.