quarta-feira, setembro 20, 2006

O “Grafismo Interessante”

Nos domingos à noite, quando o Verão acaba, dedico sempre algum tempo a desejar com todas as forças que o Herman não volte de férias. É claro que ele acaba sempre por voltar e eu acabo sempre por apanhar com o habitual freak-show de actores brasileiros, dominatrixes que escreveram um livro, cançonetas alemãs absurdas, rábulas revisteiras, videntes pimba, etc. Desta vez o regresso foi ainda mais inquietante: de repente, a meio de um zapping, lá estava ele a falar de design gráfico! De óculos na ponta do nariz e de olhos franzidos, atestava que o livro Nacional e Transmissível, de Eduardo Prado Coelho, tinha um “grafismo interessante”.

Eu já tinha visto o livro na Fnac: era um objecto grande, de formato quase quadrado, e tudo nele dava a sensação de uma coisa nova a tentar imitar à pressão uma coisa antiga: na capa, tinha o título impresso sobre papel craft em grandes letras vectoriais a imitar stencil; no interior, o texto, composto em Bodoni, estava sobreposto a um sombreado digital amarelado, provavelmente a tentar imitar a textura do papel antigo; finalmente, uma assinatura demasiado parecida com um carimbo assegurava estarmos perante uma edição numerada e assinada. Como seria de esperar, o conjunto era uniformemente dissonante e confuso: gráficos digitais grosseiros misturavam-se com fotografias de cores saturadas e velhos recortes de jornais, sem nunca conseguirem atingir nem uma integração bem sucedida, nem um contraste interessante. Na melhor das hipóteses – pela escolha das fontes e pelo género de imagem – parecia uma versão digital e tosca da revista Kapa, da qual Luís Miguel Castro, o designer do livro, foi director artístico.

Todas as vezes que ouvi ou li a expressão “grafismo interessante” foi em contextos semelhantes: uma figura pública a falar de um objecto graficamente vistoso, que foge à norma, mas que é, em última análise, falhado. Já ouvi, por exemplo, esta expressão ser usada por Marcelo Rebelo de Sousa em relação à revista Egoísta, que é provavelmente o projecto mais desequilibrado de Henrique Cayatte. O logótipo geométrico e a capa impressa sobre papel mate ligam muito mal com o interior da revista, que usa uma fonte género máquina de escrever e cores saturadas impressas em papel uncoated; os cortantes, que são provavelmente a característica mais conhecida da revista, raramente são bem conseguidos ou mesmo pertinentes. Mais uma vez “grafismo interessante” parece querer significar um objecto arrojado, raro, luxuoso, que acumula sem muito critério uma grande quantidade de recursos técnicos e gráficos.

A própria expressão é datada: falar de “grafismo” era habitual há uns vinte anos, quando estava mais na moda roubar palavras aos franceses do que aos ingleses. Nessa altura, não se usava muito a palavra “design” em relação às coisas impressas. Os cursos de design de comunicação eram uma coisa recente e a maioria do trabalho era feito por auto-didactas ou pintores. Talvez por essa razão, “grafismo interessante” seja ainda agora usado em relação ao design feito por pintores (um bom exemplo disso é o logótipo de José de Guimarães para Portugal).

Por tudo isto, era quase inevitável que alguém dissesse que o Sol, o novo semanário de José António Saraiva, tem um “grafismo interessante”. Afinal possui todas as características da classe, o que já era dolorosamente visível na sua campanha publicitária. Nos anúncios era dado um grande destaque ao logótipo feioso do pintor Pedro Proença, que não consegue colar de forma alguma com o resto das opções tipográficas do jornal. Longe de ser um título ou uma palavra, acaba por ser apenas uma imagem isolada que só encaixa na capa rodeado de uma grande quantidade de espaço branco. Foi provavelmente concebido para se parecer com o já referido Portugal de José de Guimarães – que de resto é ironicamente uma cópia fanhosa do equivalente espanhol. A ideia seria conotar o Sol com a ideia de Portugal, uma hipótese que o uso de figuras associadas ao passado histórico português – Gago Coutinho, Sacadura Cabral, Eusébio e José Hermano Saraiva – parece confirmar. A campanha ilustra também um certo regresso ao passado e aos valores seguros e universais, em vez da anunciada inovação – quem é que ainda pensa em Picasso como um símbolo da criatividade ou de Gago Coutinho e Sacadura Cabral como ícones do risco e da aventura? Tudo o resto são chavões visuais avulsos ou mal conseguidos – o bebé ilustrando o nascimento; o vestido levantado de Marylin; a sobrancelha erguida de Marcelo Rebelo de Sousa; etc. O facto de serem usadas versões ilustradas de imagens conhecidas parece querer sugerir um ponto de vista editorial próprio, uma certa distância em relação à realidade imediata, mas a intenção acaba por ser traída pela falta de qualidade dos desenhos de Nuno Saraiva, muito longe da sua forma habitual, que são desfavorecidos pela grande escala – muitas personagens só são identificáveis pela legenda.

A certa altura, um amigo meu disse-me que ainda tinha a esperança que tudo aquilo fosse um estratagema para enganar a concorrência – foi a opinião mais caridosa que ouvi sobre o assunto –, mas quando finalmente o jornal saiu, era bem pior do que a campanha levava a esperar. Era “grafismo interessante” do início ao fim: parecia uma versão mais pequena, mas também mais concentrada, das piores características do Expresso pré-remodelação. As páginas, bastante mais reduzidas que as do Expresso, pareciam ainda assim vazias , apesar do tamanho da fonte de texto ser dos maiores que já vi ser usado em jornais; a intenção é talvez fazer render o peixe, enchendo a bem ou a mal a maior quantidade de páginas possível – há também muito poucos artigos por página. Os títulos, reduzidos quase sempre a três palavras ou menos para poder aumentar o tamanho da fonte, são bastante prejudicados pelo aspecto vazio das páginas e pelo par de fontes escolhidas que simplesmente não combinam. A impressão geral é de dispersão: parece uma coisa a meio caminho entre o jornal e a revista. A organização editorial também não contribui para a seriedade da coisa: a secção “mulher - que - matou - o - marido - com - uma - caçadeira” chama-se “mundo real”(?) e o obituário chama-se “em paz”(???). A revista Tabu não é muito melhor, cheia de caixas coloridas inconsequentemente desalinhadas e de hierarquias tipográficas desequilibradas – se o jornal parece vazio, a revista parece demasiado cheia. Finalmente, o detalhe do logótipo mudar de cor com as estações do ano, só serve para reforçar “conceptualmente” o “interesse” do “grafismo”.

Na prática, o Sol só serviu para assustar a concorrência: o Expresso assumiu mais cedo uma remodelação que o tornou bastante mais legível e portátil, embora quase plagiando o The Guardian, com a sua banda azul no título e dupla-página central com fotografia de grande formato; o Público passou o Mil Folhas para a sexta-feira, minimizando os efeitos do cada vez mais péssimo Y (fica para o fim do ano a remodelação definitiva, da autoria do designer do The Guardian, Mark Porter); a , a revista do Diário de Notícias, é bem feita (embora não goste quer do logótipo, quer dos trocadilhos gráficos mal resolvidos a que dá origem), mas o jornal propriamente dito acaba por ser uma versão menos afirmativa do Público de há uns anos.

Mas, no fundo, o que assusta mais no Sol é a sua crença confiante de que o “grafismo interessante” corresponde efectivamente à maneira como os portugueses se vêem, e que afinal é o próprio design português que é “graficamente interessante”.