Conversa de Vendedor
Há uns anos, quando houve o referendo em Timor, a opinião pública portuguesa discutiu sem o saber e sem nunca ter usado a palavra em questão um problema de design.
A coisa tinha a ver com os boletins de voto. Segundo parece, os timorenses tinham como hábito riscar as opções com que não concordavam, podendo votar inadvertidamente contra a autodeterminação. Não sei se esta era uma preocupação legítima ou um mero excesso de zelo democrático, mas alguns comentadores sugeriram possíveis alterações da configuração e preenchimento dos boletins de voto, a inclusão de instruções visuais, etc.
Num jantar com alguns arquitectos, sugeri que o assunto poderia ser resolvido adequadamente por um designer. A reacção espantou-me: fitaram-me como se estivessem à espera que eu acrescentasse "Só estava a brincar, claro!" e um deles acabou por dizer: "Acho que estás a ser demasiado demiúrgico". É verdade, há pessoas que falam assim a tradução para português corrente seria "Vai lá fazer flyers, ó palerma, que estamos a falar de coisas REALMENTE sérias.
Estas eram pessoas informadas, cultas, que contratavam regularmente designers; mais ainda: vinham de uma área com afinidades históricas e metodológicas com o design; no entanto, acreditavam manifestamente que este era incompatível com boletins de voto. Segundo percebi, eles achavam que a esfera de acção do design se limitava aos produtos de consumo e publicidade. O seu uso em assuntos públicos ou humanitários poderia dar a sensação de que alguém estava a vender alguma coisa; talvez se pudesse associá-lo a direitos humanos se estivéssemos a falar de cartazes, por exemplo, mas um boletim de voto?!...
Muitos designers definiriam a sua actividade como essencialmente publicitária. Mesmo quando a relação com o marketing não é óbvia pode-se sempre torcer um bocadinho o raciocínio de maneira a que tudo encaixe. Por exemplo: a paginação de um livro não serve para anunciá-lo, mas pode dizer-se que o bom aspecto e ergonomia de uma publicação também servem para a vender; quando fazemos um boletim de voto estamos a ajudar a "vender" a ideia de democracia, os direitos humanos, etc.
E quando o design quer filosofar, a publicidade também fornece boas metáforas: se falamos da identidade de um designer, falamos do designer enquanto marca ou logotipo; se falamos de não-designers chamamos-lhe clientes e por aí fora A causa mais provável para esta apropriação pode ter a ver com a desconfiança generalizada dos designers em relação à teoria. A maioria das escolas de design não promove a articulação de um discurso teórico próprio, portanto os designers, quando precisam de reflectir ou falar sobre a sua profissão, têm que ir buscar as palavras onde podem. De certa forma, o discurso publicitário pode também emprestar uma aparência de fiabilidade e competência a uma profissão com conotações "artísticas" olhadas com desconfiança pelos clientes mais empresariais.
No entanto, os diferentes discursos teóricos não são neutros. Transportam consigo um conjunto de valores indissociáveis dos termos usados. O que eu estou a tentar dizer é que o discurso dos praticantes de uma profissão não é separável da sua constituição. O discurso não é autónomo: não existe além da profissão, nem é arbitrário em relação a ela, ajudando a defini-la e mesmo constitui-la.
Uma vez vulgarizado, o discurso de tonalidades publicitárias não é facilmente descartável e limita efectivamente o campo de acção dos designers. Na prática, este tipo de discurso acaba por levar os designers a entender que todos os actos de comunicação são essencialmente publicidade e vice-versa.
Será que o design gráfico se vê como uma linguagem verdadeiramente universal ou apenas como uma linguagem privada, disponível apenas a quem paga mais? Isto implica outra questão: será que o público pode responder e interagir totalmente com os objectos de design sem infringir um direito de autor? Não estou a dizer que o design deva ser gratuito. Pergunto apenas se ele pode ser gratuito sem violar a sua natureza. Por outras palavras (as do costume): será que o design pode trabalhar para todo o tipo de clientes e até cobrar-lhes dinheiro sem afectar a credibilidade deles?
Um discurso teórico mais neutral e autónomo poderia aumentar a esfera de acção do design, e ajudá-lo a estabelecer-se a longo prazo como uma coisa universalmente útil e não apenas como mais uma modalidade de marketing. Não pretendo com isto "vender" a teoria como mais uma forma de "promover" a profissão; uma actividade teórica "promocional" está inevitavelmente condicionada a dar pareceres positivos que não prejudiquem o negócio. O design precisa de uma verdadeira crítica que não se limite a promover a profissão e a fornecer auto-ajuda aos seus praticantes.
A coisa tinha a ver com os boletins de voto. Segundo parece, os timorenses tinham como hábito riscar as opções com que não concordavam, podendo votar inadvertidamente contra a autodeterminação. Não sei se esta era uma preocupação legítima ou um mero excesso de zelo democrático, mas alguns comentadores sugeriram possíveis alterações da configuração e preenchimento dos boletins de voto, a inclusão de instruções visuais, etc.
Num jantar com alguns arquitectos, sugeri que o assunto poderia ser resolvido adequadamente por um designer. A reacção espantou-me: fitaram-me como se estivessem à espera que eu acrescentasse "Só estava a brincar, claro!" e um deles acabou por dizer: "Acho que estás a ser demasiado demiúrgico". É verdade, há pessoas que falam assim a tradução para português corrente seria "Vai lá fazer flyers, ó palerma, que estamos a falar de coisas REALMENTE sérias.
Estas eram pessoas informadas, cultas, que contratavam regularmente designers; mais ainda: vinham de uma área com afinidades históricas e metodológicas com o design; no entanto, acreditavam manifestamente que este era incompatível com boletins de voto. Segundo percebi, eles achavam que a esfera de acção do design se limitava aos produtos de consumo e publicidade. O seu uso em assuntos públicos ou humanitários poderia dar a sensação de que alguém estava a vender alguma coisa; talvez se pudesse associá-lo a direitos humanos se estivéssemos a falar de cartazes, por exemplo, mas um boletim de voto?!...
Muitos designers definiriam a sua actividade como essencialmente publicitária. Mesmo quando a relação com o marketing não é óbvia pode-se sempre torcer um bocadinho o raciocínio de maneira a que tudo encaixe. Por exemplo: a paginação de um livro não serve para anunciá-lo, mas pode dizer-se que o bom aspecto e ergonomia de uma publicação também servem para a vender; quando fazemos um boletim de voto estamos a ajudar a "vender" a ideia de democracia, os direitos humanos, etc.
E quando o design quer filosofar, a publicidade também fornece boas metáforas: se falamos da identidade de um designer, falamos do designer enquanto marca ou logotipo; se falamos de não-designers chamamos-lhe clientes e por aí fora A causa mais provável para esta apropriação pode ter a ver com a desconfiança generalizada dos designers em relação à teoria. A maioria das escolas de design não promove a articulação de um discurso teórico próprio, portanto os designers, quando precisam de reflectir ou falar sobre a sua profissão, têm que ir buscar as palavras onde podem. De certa forma, o discurso publicitário pode também emprestar uma aparência de fiabilidade e competência a uma profissão com conotações "artísticas" olhadas com desconfiança pelos clientes mais empresariais.
No entanto, os diferentes discursos teóricos não são neutros. Transportam consigo um conjunto de valores indissociáveis dos termos usados. O que eu estou a tentar dizer é que o discurso dos praticantes de uma profissão não é separável da sua constituição. O discurso não é autónomo: não existe além da profissão, nem é arbitrário em relação a ela, ajudando a defini-la e mesmo constitui-la.
Uma vez vulgarizado, o discurso de tonalidades publicitárias não é facilmente descartável e limita efectivamente o campo de acção dos designers. Na prática, este tipo de discurso acaba por levar os designers a entender que todos os actos de comunicação são essencialmente publicidade e vice-versa.
Será que o design gráfico se vê como uma linguagem verdadeiramente universal ou apenas como uma linguagem privada, disponível apenas a quem paga mais? Isto implica outra questão: será que o público pode responder e interagir totalmente com os objectos de design sem infringir um direito de autor? Não estou a dizer que o design deva ser gratuito. Pergunto apenas se ele pode ser gratuito sem violar a sua natureza. Por outras palavras (as do costume): será que o design pode trabalhar para todo o tipo de clientes e até cobrar-lhes dinheiro sem afectar a credibilidade deles?
Um discurso teórico mais neutral e autónomo poderia aumentar a esfera de acção do design, e ajudá-lo a estabelecer-se a longo prazo como uma coisa universalmente útil e não apenas como mais uma modalidade de marketing. Não pretendo com isto "vender" a teoria como mais uma forma de "promover" a profissão; uma actividade teórica "promocional" está inevitavelmente condicionada a dar pareceres positivos que não prejudiquem o negócio. O design precisa de uma verdadeira crítica que não se limite a promover a profissão e a fornecer auto-ajuda aos seus praticantes.
5 Comments:
É bem verdade. A crítica e a sua circulação têm a grande vantagem de fazer chegar ao comum dos mortais (e também aos arquitectos) algumas noções para se discutir design. Deparamos demasiadas vezes com um desconhecimento completo da estrutura que antecede um problema de design (e consequentemente torna-se muito difícil explicar a razão de determinada opção tipográfica sem falar de Gutenberg).
E a "proximidade" da profissão às suas parentes das artes plásticas ou da arquitectura faz com que se pressuponha uma história comum e ou dependente (não que seja incorrecto ter esta leitura) e contaminando uma discussão constructiva.
Ressabiator,
Tenho saudades desses nossos pequenos-almoços tardios, mas não posso deixar de lhe pedir, como um tal de João já fez [será o João?!], que escreva sobre o logotipo da nossa E.D.P., mais ainda, explique como é possível que seja tão semelhante com o da Serralharia "O Feliz", precisamente!, em Braga?!
É que acredite, acordo sem ponta de sorriso por causa disso.
Um abraço,
PP
siga pa bingo que este ja cansa
Já o disse uma vez e volto a dizer...
QUE RAIO DE MANIA QUE AS PESSOAS TÊM DE SE ESCREVER MAL AS PALAVRAS!
A palavra LOGÓTIPO tem acento!
"QUE RAIO DE MANIA QUE AS PESSOAS TÊM DE SE ESCREVER MAL AS PALAVRAS!"
vê lá se aprendes a construir as frases correctamente!
luís
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