Interdisciplinaridade™
No começo da Revolução Industrial, os métodos de trabalho de tecelões e armeiros foram racionalizados, divididos em tarefas simples e posteriormente automatizados, incorporados em máquinas que podiam ser produzidas em massa, compradas e vendidas.
Os designers que se consideravam homens de ideias, criativos especializados na manipulação de certo tipo de significantes, achavam que estavam imunes a este tipo de mudança.
A invenção do computador pessoal viria abalar esta confiança. De início, o computador parecia uma coisa boa. Para os poucos designers que o podiam comprar era uma máquina quase milagrosa. Permitia poupar tempo e dinheiro, centralizando numa só pessoa tarefas que anteriormente eram distribuídas por uma longa linha de produção.
O problema foi quando toda a gente começou a ter um. De repente, apareceram queixas de que precisava de ser usado de uma forma mais responsável. Dizia-se, sem muita convicção, que era apenas mais uma ferramenta. O que importava era o conceito e não a tecnologia.
Com o tempo, muitos dos processos que os designers reclamavam como seus foram transformados em programas de computador que qualquer pessoa podia comprar — ou piratear. Questões que seriam consideradas quase espirituais passaram a ser deixadas ao critério do computador. Falo da hifenização, do alinhamento óptico, do espaço entre palavras, da correcção ortográfica e gramatical. Mesmo um programa como o Word permite resultados que envergonhariam a maioria dos designers profissionais dos anos setenta.
O que sobrou desta transformação de processos e metodologias em produtos de consumo acabou por ser a história e o discurso da disciplina. Por discurso não digo apenas a maneira como um conjunto de pessoas falam sobre o que fazem, mas também uma série de maneirismos embutidos na própria prática.
Por outras palavras, toda a gente pode ter acesso a uma versão simplificada, automatizada e pronta a usar da totalidade de uma disciplina. Esta defende-se, apostando tudo no pedigree histórico e na capacidade de renovar e originar novos métodos de trabalho, tentando manter-se fora do alcance da automatização — talvez isto explique a recente canonização do acidente e do erro.
Notem que esta transformação de disciplinas em produtos de consumo não afecta apenas o design, mas também a música, o cinema, a ciência, etc. O discurso defensivo de cada uma destas disciplinas apela geralmente para valores históricos: "Os designers não entendem as questões históricas deste tipo de música", "os artistas plásticos não entendem de onde vem este tipo de paginação". No entanto, o consumo de metodologias e objectos tornados independentes da sua história e do seu lugar de origem tem um aroma a actualidade, a novo, que só é conseguido a muito custo dentro das fronteiras das próprias disciplinas. Os cépticos dirão que é apenas uma ilusão, que tudo isto já foi feito há muito tempo. É verdade, mas esta sensação rápida e fugaz de novidade não será a derradeira e mais viciante experiência que se pode comprar?
Muito do que se chama agora "interdisciplinaridade" talvez seja apenas um mercado onde se trocam e vendem disciplinas, transformadas em bens de consumo.
Os designers que se consideravam homens de ideias, criativos especializados na manipulação de certo tipo de significantes, achavam que estavam imunes a este tipo de mudança.
A invenção do computador pessoal viria abalar esta confiança. De início, o computador parecia uma coisa boa. Para os poucos designers que o podiam comprar era uma máquina quase milagrosa. Permitia poupar tempo e dinheiro, centralizando numa só pessoa tarefas que anteriormente eram distribuídas por uma longa linha de produção.
O problema foi quando toda a gente começou a ter um. De repente, apareceram queixas de que precisava de ser usado de uma forma mais responsável. Dizia-se, sem muita convicção, que era apenas mais uma ferramenta. O que importava era o conceito e não a tecnologia.
Com o tempo, muitos dos processos que os designers reclamavam como seus foram transformados em programas de computador que qualquer pessoa podia comprar — ou piratear. Questões que seriam consideradas quase espirituais passaram a ser deixadas ao critério do computador. Falo da hifenização, do alinhamento óptico, do espaço entre palavras, da correcção ortográfica e gramatical. Mesmo um programa como o Word permite resultados que envergonhariam a maioria dos designers profissionais dos anos setenta.
O que sobrou desta transformação de processos e metodologias em produtos de consumo acabou por ser a história e o discurso da disciplina. Por discurso não digo apenas a maneira como um conjunto de pessoas falam sobre o que fazem, mas também uma série de maneirismos embutidos na própria prática.
Por outras palavras, toda a gente pode ter acesso a uma versão simplificada, automatizada e pronta a usar da totalidade de uma disciplina. Esta defende-se, apostando tudo no pedigree histórico e na capacidade de renovar e originar novos métodos de trabalho, tentando manter-se fora do alcance da automatização — talvez isto explique a recente canonização do acidente e do erro.
Notem que esta transformação de disciplinas em produtos de consumo não afecta apenas o design, mas também a música, o cinema, a ciência, etc. O discurso defensivo de cada uma destas disciplinas apela geralmente para valores históricos: "Os designers não entendem as questões históricas deste tipo de música", "os artistas plásticos não entendem de onde vem este tipo de paginação". No entanto, o consumo de metodologias e objectos tornados independentes da sua história e do seu lugar de origem tem um aroma a actualidade, a novo, que só é conseguido a muito custo dentro das fronteiras das próprias disciplinas. Os cépticos dirão que é apenas uma ilusão, que tudo isto já foi feito há muito tempo. É verdade, mas esta sensação rápida e fugaz de novidade não será a derradeira e mais viciante experiência que se pode comprar?
Muito do que se chama agora "interdisciplinaridade" talvez seja apenas um mercado onde se trocam e vendem disciplinas, transformadas em bens de consumo.
11 Comments:
Desculpa, mas não percebi muito bem a que tipo de novidades te referes quando escreves "É verdade, mas esta sensação rápida e fugaz de novidade não será a derradeira e mais viciante experiência que se pode comprar?"
Segundo o que percebi essas novidades são geradas pelo acesso massivo a computadores e respectivos softwares, mas porquê "a derradeira e mais viciante experiência que se pode comprar?"
Referes-te a novidades a nível da experimentação e elaboração dos objectos? (pode acontecer pontualmente, mas é uma excepção)
Parece-me que este acesso democratizado a computadores não têm paralelo a nível de conhecimentos na área da crítica e história do design, e assim sendo não pode haver uma competitividade produtiva, é como se houvesse um desnível, e este desnível nota-se. Se não se notar através da prática da disciplina, pelo menos notar-se-á através do seu discurso.
Elucida-me.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
(os dois comments anteriores foram apagados por que a acentuação não estava a funcionar bem. Tenho tido algumas reclamações nesse sentido dos utilizadores de mac. Aqui vai a versão sem os acentos checos...)
O uso da palavra "novidade" é literal: queria apenas dizer que uma coisa isolada da sua história pode parecer nova, por omissão. É uma "novidade" relativa e discutível, obviamente.
Concordo perfeitamente com o reparo final: uma disciplina, como lugar de origem de um discurso e de uma história, tem de equilibrar (ou superar) este consumo interdisciplinar que tem tendência a descaracterizá-la.
Infelizmente, os designers tendem a considerar a sua disciplina como uma coisa natural e necessária que não precisa de justificações. Penso que um discurso menos sobranceiro e normativo poderia dar lugar 8com vantagem) a uma postura mais observadora e humilde em relação ao mundo fora da disciplina.
Peço desculpa pela resposta telegráfica, mas vai haver mais textos dedicados ao assunto da "disciplinaridade na era da sua reprodução técnica".
Cada vez mais o papel do designer na sociedade precisa de ser justificado. Isto, se queremos ser reconhecidos, formar ordens e associacoes, ter algo a dizer sobre a legislacao que podera afectar ou nao a nossa classe.
Alem disso, acho que dizer que um WORD faz a coisa com a mesma beleza que um bom tipografo e um exagero absurdo.
No entanto, defendo essa pareceria entre as varias disciplinas do saber artisitico (ou nao), embora todos tenham sempre vontade de demonstrar que tambem sabem fazer o que o outro faz.
(sem acentos...)
Um comentario que subscrevo na integra.
A questao da boa tipografia é indiscutivel (no texto, eu refiro a maioria dos designers profissionais dos anos 70, nao a maioria dos BONS designers profissionais dos anos 70).
Quer-me parecer que existem alguns pontos em desproveito ao autor.
Os designers não se consideravam, aquando da Revolução Industrial, imunes a mudanças na produção. A noção de "designer" que se reveste de real existência nesta mesma altura foi sendo moldada precisamente neste ambiente. Lembremo-nos que não só o Arts & Crafts foi uma resposta aos critérios de produção, como mais tarde a Deutscher Werkbund organizou o seu trabalho à volta das evoluções técnicas que foram tomando lugar.
Permita-me referir esta como a frase primeira da derrota: «O que sobrou desta transformação de processos e metodologias em produtos de consumo acabou por ser a história e o discurso da disciplina.»; a partir daqui somos nós próprios a declarar que não só estas transformações nos afectam, como resignamos à sua importância prática e deixamos de compreender a disciplina de design enquanto originária e dependente do pensamento e da criatividade de uma pessoa que sintetiza e agrupa em si um vasto conhecimento.
Quanto à questão dos maneirismos, eles sempre houveram, sobretudo no ínicio (final do séc. XIX); não se devendo por isso à utilização do computador ou outra tecnologia informática. Devo acrescentar que nas últimas décadas foi um exemplo de maneirismo que revitalizou a compreensão que se fazia de uma disciplina que deve reflectir sobre ela própria.
Aliás, a questão encontra-se colocada de um modo avesso. Creio que esta adaptação do texto de Walter Benjamin para uma actualidade informática é mal conseguida nesse aspecto. O que aqui se refere é mais o impacto social que uma democratização tecnológica consubstancia e não a real interdisciplinaridade, que felizmente não é assim tão díficil de encontrar nos dias de hoje. Naturalmente essa vive do interesse do designer por áreas que aparentemente, ou não, se afastavam de design. Ou seja parte do autor para a disciplina e para fora, não como aqui é referido, de fora para o autor.
Cumprimentos
walter benjamin, esse grande frustrado
Respondendo ponto-a-ponto:
O design sempre foi uma mistura contraditória entre ideais de mudança social e conservadorismo empresarial. Se datarmos (é discutível, claro) o começo da profissão em William Morris, esta “dupla personalidade” parece óbvia. Actualmente, é possível encontrar pontos de vista tecnófilos, a par com sentimentos bastante resistentes à tecnologia. O designer médio, “praticante” e sem preocupações teóricas sempre foi bastante conservador e, como qualquer bom empresário, nunca quis matar a galinha dos ovos de ouro.
Um dos temas que tratei é a recuperação, no contexto do design, de um conceito de Karl Marx: a conversão de processos intelectuais em capital fixo. Muita da história do design se dedicou a esta conversão, criando sistemas abstractos e quase algorítmicos de resolver e racionalizar problemas, que seriam facilmente digitalizados – o Estilo Internacional continua a ser um dos melhores exemplos. Este é um processo “natural” da evolução de uma sociedade capitalista, que achei que seria interessante discutir em relação à profissão do designer.
Existem dois usos da palavra “interdisciplinaridade”: um deles significa que as disciplinas não têm fronteiras fechadas e comunicam saudavelmente entre si; o outro é uma espécie de livre-trânsito total que abre caminho a bem ou a mal. Torna-se difícil criticá-lo porque se reveste de valores positivos, expansivos e optimistas (seria possível fazer um paralelo com a Globalização). Alguns autores como Hal Foster, no texto Design & Crime fazem um bom esboço dessa crítica. As ambições “totais” do design, segundo Foster, tiram “espaço vital de manobra” ao utilizador e seria necessário reencontrar fronteiras e limites.
Quando digo que tudo o que resta desta “massificação” disciplinar é a capacidade de gerar discurso e história próprios, não era minha intenção diminuir estas actividades. Antes pelo contrário: penso que, se a prática e presença do design se massificaram, as responsabilidades teóricas da disciplina se alargaram. Nesse aspecto penso que a massificação do design afecta mais a formação teórica dos designers que a simples prática de atelier. Citando Rick Poynor, “the real challenge for design writing now is to move outwards into a world in which design is everywhere.”
Os temas mais interessantes em termos críticos costumam ser os mais consensuais e omnipresentes. Uma das “regras” do design gráfico é que, a dada altura, existe sempre uma fonte e um conceito que são indiscutíveis. Ora são essas fontes e esses conceitos que importa interrogar.
Cumprimentos
"you don't need a graphic designer. do it yourself"
Interdisciplinaridade e téncica elegida: ao criterio do autor. O resultado é da sua responsabilidade e a sua aceitaçao é da responsabilidade do cliente ou publico (ou da maezinha dele). É triste o design a metro quando é congratulado no meio de trabalhos nao semi-standarizados por um juri desactualizado ou apenas ignorante.
Bem haja kem domina os seus instintos perante o word e o photoshop.
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